Fiasco do pix sinaliza mais problemas no front fiscal
Em condições habituais de temperatura e pressão, o desafio fiscal do atual governo já é dificílimo. No afã de formalmente “cumprir metas”, a equipe econômica dá nós em pingo d’água para respeitar o arcabouço e tentar entregar os resultados primários prometidos. Mas o cerco do mercado se aperta, indicando que, mais que a formalidade de metas cumpridas, o que importa é interromper a trajetória veloz de aumento da dívida pública como proporção do PIB. E aí é não adianta tapar o sol com a peneira: o ajuste tem que ser verdadeiro e sem truques (um deles é só mirar o primário, e esquecer do déficit financeiro).
Como se a situação já não fosse suficientemente complicada, o recente episódio da portaria da Receita obrigando todos os agentes financeiros a reportar transações de pix superiores a R$ 5 mil mensais sinaliza que a política fiscal e tributária entrou num terreno minado de ultrapolitizarão e antecipação da campanha eleitoral de 2026.
A medida provocou furor nas redes sociais, com uma reação envolvendo fake news grosseiras e formas mais sutis e efetivas de desinformação, na zona cinzenta entre o fake e o parcialmente verdadeiro. Nessa segunda categoria, o destaque absoluto foi o vídeo do jovem deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que atingiu mais de 250 milhões de visualizações.
No vídeo, o parlamentar atiçou a paranoia geral de que as transações dos pobres e informais no pix seriam vigiadas em busca de quaisquer irregularidades na fonte de recursos, e, potencialmente, taxadas num segundo momento. Extremamente hábil, o discurso de Nikolas evitou a fake news frontal de que a portaria era para taxar o pix, usou uma linguagem simples e sintonizada com o sentimento popular, com tudo embrulhado num vigoroso ataque a Lula e seu governo.
O governo Lula em seu terceiro mandato se mostra aterrorizado desde o início com o fantasma de uma perda mais fatal de popularidade – medo reforçado pelo fato de que a aprovação do presidente vem flutuando em torno do mínimo necessário para manter a governabilidade, mesmo com atividade econômica, emprego e renda “bombando”.
E esse governo inseguro reagiu ao ataque nas redes sociais à portaria do pix não só a revogando, mas tomando outras medidas redundantes para sacralizar o instrumento e mostrar que ele se tornou outros desses tabus intocáveis da política brasileira.
Mas nem isso dissipou totalmente a paranoia popular. Há uma razão para isso. Lula e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, optaram por, desde o início do atual mandato, fazer uma forte expansão de gastos a ser financiada principalmente pelo aumento de tributos.
Parte dessa agenda é inofensiva ou talvez até favorável em relação à popularidade, pois se volta a fazer os mais ricos pagarem mais impostos, seja em seus fundos de investimento ou por meio do fechamento de brechas na tributação de empresas.
Mas outra parte da ofensiva acaba batendo no bolso da classe média e dos remediados. A taxação das “blusinhas da Shein” é o melhor exemplo, e, aliás, foi usado por Nikolas para ventilar a ideia de que, mesmo que o pix não esteja sendo tributado agora, poderá ser daqui a pouco (já que o mesmo processo ocorreu com as compras eletrônicas nas plataformas chinesas).
O pior é que a peça de resistência da pauta econômica do governo em 2025 é a reforma da taxação da renda. Em tese, tudo será feito para tornar o sistema mais progressivo. Mas essa agenda não vai pegar apenas os superricos, mas também aqueles que se consideram de “classe média”, apesar de estarem bem acima da metade da pirâmide, e mesmo segmentos de fato mais próximos da média.
Em termos de relevância eleitoral, os afetados negativamente com certeza serão muito mais numerosos do que aqueles que têm dinheiro em fundos no exterior. E se trata de uma turma – a dos potencialmente prejudicados pela reforma da tributação da renda – que sabe fazer barulho político.
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Para complicar, a teia barroca de privilégios tributários no Brasil, que a reforma visa atacar, abarca – num arco que vai do MEI às pejotinhas – desde humildes trabalhadores informais a bancas milionárias de advogados. A mistura e a confusão entre esses interesses é terreno mais do que propício para que os profissionais da desinformação atuem na antecipação da campanha eleitoral, apoiados tanto pelos lobbies dos poderosos como pelo clamor das massas medianas.
Ricardo Ribeiro, analista político da MCM-4Intelligence, nota que o fiasco da portaria do pix colou mais uma vez em Haddad e sua equipe (tanto junto à opinião pública como dentro do governo) a pecha de insensíveis e descolados da realidade.
O analista menciona que, aparentemente, a revogação da portaria foi defendida por Sidônio Palmeira, novo ministro da Secretaria de Comunicação, e sofreu resistência por parte de Haddad. A mesma dicotomia de posições teria ocorrido com a inclusão da isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil no pacote fiscal do final ano passado (Sidônio a favor, Haddad contra).
Na últimaCarta Política da MCM, Ribeiro comenta que “não é um bom presságio o ministro da Fazenda ser derrotado pelo ‘marqueteiro’ do governo em debates que envolvem questões econômicas”.
Em relação às dificuldades fiscais à frente, o analista político observa que “empreendedores informais não querem virar MEI [a coluna acrescenta: nem os MEI aceitam qualquer redução de seu maciço subsídio tributário e previdenciário], empresários não querem abrir mão de benefícios fiscais, milionários subtaxados não querem nem pagar uma alíquota mínima de 10% de IR, deputados e senadores não abrem mão das emendas parlamentares e assim por diante”. Ribeiro conclui sintetizando sua visão pós episódio do pix: “Em suma, o governo espremido pelo mercado e pelas resistências ao ajuste fiscal, acossado por uma oposição aguerrida e competente no uso – e, por vezes, no abuso – das redes sociais, em um contexto de extremada polarização política, está bem encrencado; enquanto o governo se enrola, a oposição afia as garras para 2026”.
Fonte: Estadão