Judicialização predatória afeta equilíbrio do setor de saúde
Entre janeiro e outubro de 2024, mais de 550 mil casos judiciais envolvendo temas de saúde pública e suplementar foram abertos na Justiça brasileira, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). É um número que chama a atenção não só pelo valor absoluto, mas também pelo crescimento de 95% na comparação com o do mesmo período de 2020. Mais do que sobrecarregar o Poder Judiciário, a insegurança jurídica que afeta o sistema de saúde resulta em alta de casos abertos – atualmente na faixa dos 800 mil processos– e desequilíbrio em um dos setores mais importantes do Brasil. A extrema e indevida judicialização da saúde no Brasil foi um dos principais temas do 28º Congresso da Abramge, associação de operadoras de saúde suplementar que reúne 140 empresas em 19 Estados do País.
Realizado nos dias 21 e 22 de novembro de 2024, no Pavilhão da Bienal do Ibirapuera, em São Paulo, o evento teve a participação de autoridades do governo, do Supremo Tribunal Federal e lideranças da área da saúde. “São preocupantes os números no que concerne à judicialização, que cada vez mais se intensifica”, destacou o ministro do STF Gilmar Mendes, que participou da abertura do evento e tem liderado esforços para implementar mudanças que levem à redução do número de casos.
Hoje, no Brasil, o principal motivo para a litigância na Saúde é a negação da cobertura assistencial e quebra de carência, segundo pesquisa da FGV Justiça liderada pelo ministro do Supremo Tribunal de Justiça Antonio Saldanha Palheiro. Em fala no evento, ele mostrou preocupação não só com o número de casos judiciais, mas também com as fraudes no setor. “A judicialização a gente enxerga, mas a fraude fica debaixo do tapete”, ressaltou Saldanha.
Reduzir a judicialização é uma demanda coletiva dos ministros da Suprema Corte, como demonstrou o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, também durante o evento. “Não é possível aumentar a estrutura do Judiciário se a judicialização aumentar, até porque o Judiciário é uma instância patológica na vida de um país. Os problemas devem ser resolvidos administrativamente, porque litigar é barato para quem litiga, mas é caro para a sociedade”, declarou Barroso em sua fala, lembrando que o País gasta 1,2% do PIB com o Judiciário atualmente.
Barroso ressaltou ainda que muitos juízes possuem dificuldade de compreender o equilíbrio entre as decisões que proclamam e o sistema de saúde. “Os juízes não são treinados para fazerem análises sistêmicas, do impacto das decisões”, disse o presidente do STF. “É preciso desfazer um equívoco que a decisão está entre a vida de um demandante e o limite orçamentário do outro: quando se direcionam recursos para um tratamento que custa R$ 10 milhões por mês, no final alguém não recebe esse dinheiro para sua assistência.”
A busca por equilíbrio e eficiência foi uma das tônicas do evento, que contou ainda com a assinatura de um acordo de cooperação entre a Abramge e o IPSConsumo para compreender as causas da judicialização e com a presença de autoridades internacionais, como a ex-primeira-ministra britânica Theresa May, que trouxe exemplos de sucesso e desafios do sistema de saúde público do Reino Unido.
Outro tema importante no congresso foi a busca pela integração entre os sistemas de saúde público e privado no Brasil, como bem lembrou o ministro José Antonio Dias Toffoli. “A saúde suplementar também é pública e temos que pensar juntos”, lembrou o magistrado do STF.
Aprender com os próprios erros é bom. Aprender com erros e acertos dos outros é melhor ainda. Ao longo de seus dois dias de programação, o 28º Congresso da Abramge trouxe não só discussões vigorosas a respeito da saúde no Brasil, mas também exemplos de como diferentes modelos da gestão do setor ao redor do mundo podem ter impactos muito variados. Presentes no evento, a ex-primeira-ministra do Reino Unido Theresa May e o ex-presidente da associação de planos de saúde do Chile (Isapres) Rafael Caviedes trouxeram ensinamentos que podem servir de exemplo e alerta para o sistema brasileiro.
Utilizado por mais de 65 milhões de pessoas em todo o Reino Unido, independentemente da renda, o National Health Service (NHS) é o mais antigo sistema de saúde pública do mundo, tendo sido criado após os escombros da Segunda Guerra Mundial. “É um aspecto fundamental do serviço britânico. Ele é gratuito para todas as pessoas, mas temos muitos desafios ao longo do tempo”, destacou Theresa May, em sessão na qual foi entrevistada pela jornalista Natuza Nery.
Entre os desafios, Theresa destacou o envelhecimento populacional, que faz com que o sistema precise arcar com doenças mais complexas, e a adoção de novas tecnologias. Quando esteve à frente do governo, a antiga premiê britânica promoveu um programa de reformas e investimento no NHS, aumentando em cerca de 20 bilhões de libras por ano os gastos do sistema – em 2025, o orçamento deve girar em torno de 190 bilhões de libras (cerca de R$ 1,38 trilhão).
Mais do que isso, porém, ela procurou promover e fiscalizar políticas capazes de controlar os gastos do serviço, como o uso de uma agência única para regular todo o sistema de saúde britânico – incluindo a oferta privada – e o foco na atenção primária. “Quando há algo errado, o primeiro passo é passar por um clínico-geral, designado para a área em que a pessoa vive. Ele é quem determina se você passa por um especialista. Se houver uma emergência, as pessoas vão direto ao hospital, mas esse clínico-geral é sempre informado”, diz Theresa. “Triagem é o segredo para manter a integridade de todas as demais etapas do NHS.”
Para desafogar o sistema, que atende mais de 1,3 milhão de pessoas diariamente, a ex-primeira-ministra reforçou os poderes de farmacêuticos, que podem ajudar em casos de menor gravidade. “São profissionais que têm expertise para lidar com alguns assuntos, o que nos ajuda a diminuir o problema de pressão dos clínicos-gerais e dos hospitais”, ressaltou. Outro ponto importante, segundo a inglesa, foi reforçar políticas de prevenção. “Precisamos encorajar comportamentos saudáveis, como o que as pessoas comem, se exercitam, como se informam e como cuidam de si mesmas”, disse May.
Ao falar sobre o futuro do sistema de saúde britânico, May destacou ainda a importância que o NHS terá no combate a questões de saúde mental. “Nós precisamos quebrar o gelo com essa conversa. Um ponto particularmente importante é discutir a saúde mental dentro dos locais de trabalho, o que pode levar a perdas de produtividade importantes”, declarou a ex-líder do Partido Conservador do Reino Unido. Para ela, é um tema que tem impacto especial na população jovem, ainda mais após a pandemia da covid-19.
Crise no Chile
Na sequência da fala de Theresa May, o ex-presidente da associação de planos de saúde privados do Chile (conhecida pela sigla Isapres) Rafael Caviedes falou sobre como o sistema de saúde no país latino entrou em colapso nos últimos anos.
Estabelecido nos anos 1980, o modelo de saúde chileno é, assim como o brasileiro, dividido entre um sistema público e outro privado. Lá, os chilenos devem dedicar 7% de seu salário para a saúde. Eles podem optar por fazer contribuições para um fundo nacional público, usado por 80% da população, ou para uma associação privada pertencente à Isapres. “É um serviço complementar. Quando se adere a um plano de saúde particular, o chileno não utiliza a rede pública”, explicou Caviedes.
Com alto índice de judicialização, especialmente por conta de reclamações acerca de tabelas de preços que diferenciavam pacientes por fatores de risco que incluíam gênero e idade, o país acumulou decisões em favor dos usuários. As operadoras protestaram, o que levou a uma intervenção da Justiça em 2022.
Na ocasião, a Suprema Corte local decidiu que as operadoras de saúde privadas deveriam não só encerrar a diferenciação, mas também ressarcir os usuários pela diferença de valores pagos desde 2019, em uma dívida que chegaria a US$ 1,5 bilhão. “Foi uma decisão muito dura”, destacou Caviedes. “Sinceramente, não sabemos como as coisas vão ficar nos próximos anos. É o que acontece quando se mudam as regras do jogo do nada.”
Durante o evento da Abramge, a fala de Caviedes foi vista como um alerta para a realidade da saúde suplementar brasileira, cujos últimos anos foram marcados por altos índices de judicialização e mudanças de normas e incorporação de novas leis sem qualquer avaliação de impacto regulatório. O que a princípio pode parecer um benefício pode acabar por prejudicar o acesso à saúde. “Para ter uma evolução concreta, precisamos trabalhar em temas como segurança jurídica e a utilização de uma agência única de incorporação. Esperar e não fazer significa ver o colapso do sistema, como aconteceu no Chile”, destacou Gustavo Ribeiro, presidente da Abramge, durante conversa com o jornalista Márcio Gomes e o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, ao final do evento.
Com cerca de 55 mil causas judiciais iniciadas por mês entre janeiro e outubro de 2024, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o setor de saúde é um dos mais judicializados do Brasil – a despeito de não ocupar os primeiros lugares quando o assunto são reclamações administrativas, seja no Procon ou em serviços como o Consumidor.gov. A fim de entender tal descompasso e caminhar em busca de evolução, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) firmou, durante seu 28º Congresso, um acordo de cooperação com o Instituto de Pesquisa e Estudos da Sociedade e Consumo (IPSConsumo) para aprofundar estudos sobre os motivos da judicialização extrema do mercado.
Chamada de Observatório do Consumidor da Saúde, a iniciativa pretende analisar, de maneira independente, dados obtidos a partir de reclamações e ações judiciais envolvendo as mais de 140 operadoras de saúde associadas à Abramge. “A litigância é prejudicial para todos, até porque o que é investido para se defender deixa de ser utilizado na atuação da assistência de saúde”, destaca Juliana Pereira, presidente do IPSConsumo e ex-secretária nacional do Consumidor, entre os anos de 2012 e 2016. “Precisamos dar um passo de maior profundidade para entender, por exemplo, se há situações não contempladas pela regulação ou se há judicialização mesmo com a regulação.”
Nos próximos meses, a iniciativa pretende reunir especialistas de diferentes setores para começar o trabalho de estudo dos dados. De acordo com Juliana, a expectativa é de que a primeira parte do trabalho, voltada a uma análise qualitativa de reclamações e ações judiciais, seja concluída até o final de 2025, perto da próxima edição do Congresso da Abramge.
Para a presidente do IPSConsumo, a iniciativa da Abramge é elogiável por buscar compreensão e responsabilidade. “É a primeira vez que eu vejo um passo dado de forma transparente num compromisso dessa envergadura”, disse ela, durante a cerimônia de assinatura do acordo de cooperação. “Queremos ajudar a reduzir os conflitos no mercado e discutir que processos podem ser aprimorados.”
Ao longo do processo, as descobertas devem ser divulgadas tanto pelo instituto de pesquisa quanto pela Abramge. “Queremos consolidar não só volumes estatísticos, mas também entender o que está por trás das estatísticas”, ressaltou ainda Juliana Pereira. A pesquisadora demonstrou ainda o interesse em ampliar o escopo do Observatório. “Espero que o poder público se junte a nós, porque este é um tema importante também para as políticas públicas.”
Depois da análise, será feito um plano de ação, entregue à Abramge para que a associação possa trabalhar nas questões – seja na comunicação dos planos de saúde, na venda, nos contratos ou até mesmo na regulação do setor. “A judicialização é um efeito, e não uma causa. Para olharmos a causa, precisamos entender os consumidores – e não podemos esquecer que o principal motivo de o setor de saúde suplementar existir é o consumidor. A busca é por esse diálogo”, complementou Gustavo Ribeiro, presidente da Abramge.
Notas técnicas
Além do acordo de cooperação entre IPSConsumo e Abramge, outra importante parceria anunciada nos últimos dias pode impactar diretamente as ações judiciais envolvendo a saúde suplementar. Bastante celebrado durante o 28º Congresso da Abramge, um acordo entre o CNJ e a ANS prevê a elaboração de notas técnicas e pareceres científicos para auxiliar os juízes em casos que envolvem o tema da saúde suplementar.
Já existente no campo da saúde pública, a parceria abastecerá o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (e-NatJus) para que, em poucas horas ou alguns dias, os magistrados tenham apoio na hora de proferir suas decisões. “Um juiz não pode mais decidir sem ouvir uma manifestação técnica”, destacou o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, em sua fala durante o Congresso da Abramge.
“Hoje, é até desumano que um juiz de direito tenha de responder a questões técnicas que qualquer pessoa leva dez anos, entre faculdade, residência e especialização, para conseguir compreender. É uma novidade que vai ajudar muito e o CNJ está no caminho certo”, complementou Gustavo Ribeiro, da Abramge. É também um avanço que ajuda a integrar o esforço de saúde pública e privada serem vistas como parte de um só sistema, percepção que precisa ser mais difundida no País.
A discussão sobre a crescente judicialização na saúde brasileira não foi a única pauta do 28º Congresso da Abramge. Ao longo de 12 horas de evento, mais de 30 palestrantes e mil inscritos – entre representantes de empresas, autoridades dos três Poderes e especialistas do setor – debateram temas que podem auxiliar o setor a reduzir gastos, ser mais eficiente e trazer melhor atendimento para os brasileiros. Entre as principais pautas, estiveram assuntos como a necessidade de uma criação de agência única de incorporação de medicamentos, a interoperabilidade de dados dos pacientes e o uso de inteligência artificial.
Hoje, o Brasil tem um sistema duplo de incorporação de medicamentos e tratamentos na saúde: enquanto a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) cuida do setor público, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem seu próprio rol. É uma situação que, na visão do setor, cria distorções.
Com duas agências, o modelo fragiliza o setor de saúde suplementar: quando a Conitec aprova um medicamento, as associadas da ANS têm 60 dias para incorporar, mesmo com projetos e precificações diferentes. Ao desbalancear um lado, o outro sente o impacto”, afirmou Ludhmila Hajjar, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em uma das falas mais aplaudidas do evento. “É meu desejo que a gente tenha uma bela agência de incorporação única, até para o setor ter mais margem de discussão com a indústria farmacêutica.”
A criação de uma agência única também evitaria desigualdades na forma com que as pessoas são tratadas. “Não existe remédio para o brasileiro A ou para o brasileiro B, são todos brasileiros”, destacou Marcos Novais, diretor executivo da Abramge, ressaltando que países como Inglaterra, Canadá ou Austrália trabalham com modelo semelhante, além de terem um sistema de monitoramento robusto para acompanhar a inserção de novas possibilidades.
Dados e IA
Outra demanda antiga e que poderia auxiliar na integração dos sistemas de saúde público e privado é a existência de um protocolo de interoperabilidade de dados – que permitiria, por exemplo, a um médico saber o histórico de exames e enfermidades de um paciente, com o devido consentimento. É algo que poderia auxiliar muito não só na resolução de emergências, mas também fazer o setor ganhar eficiência.
“A interoperabilidade hoje é uma necessidade”, destacou Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde. Durante o debate, ela declarou que o ministério está trabalhando nas bases do sistema. “Estamos preparando o terreno em todo o território brasileiro, com ações de conectividade, equipamentos, prontuário eletrônico. A aposta do ministério é na Rede Nacional de Dados de Saúde (RNDS), com mais de 2,3 bilhões de dados”, disse a secretária, cujo posto foi criado no início da atual gestão de Nísia Trindade, em janeiro de 2023.
“A interoperabilidade não é só para o SUS, mas também para a saúde suplementar, porque a jornada de um paciente passa pelos dois lados”, ressaltou ainda Ana Estela, que conclamou os presentes a baixarem o app Meu SUS Digital, onde os dados de cada cidadão brasileiro estarão reunidos a partir da RNDS. A rede de dados é também um primeiro passo importante para a organização do uso de inteligência artificial dentro do setor, mas não o único: em sua fala, Ana Estela ressaltou a necessidade da regulamentação da tecnologia, atualmente sendo discutida no Congresso Nacional.
Definições também precisam ser feitas em legislações já existentes, como a Lei Geral de Proteção de Dados, cuja regulamentação ainda precisa ser mais bem debatida para auxiliar o setor. “Quem atua com saúde sabe como a LGPD dificulta o tratamento de dados no setor e traz ambiguidade em relação ao entendimento da população”, reclamou a advogada Walquiria Favero, sócia no escritório Machado Melo e Favero Advogados, em debate que discutiu a implementação de IA na área.
No mesmo painel, o advogado Bruno Marcelos ressaltou a dificuldade de a regulação seguir o compasso da tecnologia. “Mas espero que nossa regulação seja capaz de acompanhar o desenvolvimento, garantindo segurança de dados e equilíbrio para o mercado”, ressaltou.
A reportagem buscou contato por WhatsApp com um dos advogados que representam Márcia no processo de improbidade. O espaço está aberto para manifestações.
Fonte: Estadão