Bolsa de créditos de carbono no Brasil já nasce sob desconfiança do mercado
Empresas do setor apontam pouca experiência de fundadores da B4 com o tema e não querem que ela ateste validade de títulos
Pedro Lovisi
São Paulo
O Brasil terá nas próximas semanas uma plataforma automatizada de venda e compra de créditos de carbono. Mas a chamada B4, classificada como \”bolsa\” pelos próprios fundadores, nem começou a operar e já acumula uma série de críticas de atores desse mercado.
A plataforma promete hospedar títulos de crédito de carbono em tokens; ou seja, será possível acompanhar todas as transações envolvendo aquele ativo. O processo, segundo a B4, evitará a duplicidade da venda de um mesmo crédito. A empresa também diz que vai analisar todos os registros dos títulos antes de aprovar a entrada deles na plataforma.
É esse último ponto que mais assusta o mercado.
Hoje, cabe a pouquíssimas certificadoras validar um crédito de carbono. O mercado no Brasil, por não ser regulado, opera sob regras estabelecidas por entidades privadas, a maioria internacionais e renomadas. A mais famosa é a Verra, com sede em Washington.
Vendedoras e compradoras de crédito de carbono alegam que o processo de validação das certificadoras já é confiável e, por isso, criticam a iniciativa da B4 de querer analisar o registro dos títulos. \”Os fundadores são pessoas que não têm histórico de crédito de carbono e que não entendem essa lógica do mercado\”, afirma Janaina Dallan, presidente da Aliança Brasil NBS (sigla em inglês para para Soluções Baseadas na Natureza).
A aliança diz representar as empresas desenvolvedoras de projetos de carbono responsáveis por mais de 70% dos créditos emitidos desde o ano passado no Brasil.
A B4 foi fundada por Odair Rodrigues, 40. Ele diz trabalhar em consultorias desde os 18 anos. Há oito, começou a investir no mercado de blockchain, tecnologia que propicia o registro público de todas as operações de uma mesma rede. Em seu perfil no LinkedIn, Rodrigues não menciona ter atuado em empresas ligadas à pauta ambiental.
Questionado sobre as críticas sugerindo falta de experiência com o tema, ele afirma ter participado de dois projetos voltados para créditos de carbono na Starten, incubadora criada por ele em 2021.
O outro sócio da empresa é Mozart Fernandes, 27, especialista em design e marketing. Ele também não lista empresas ligadas à pauta ambiental em seu perfil no Linkedin.
\”Quando abrirmos o livro de ofertas, qualquer pessoa vai poder gastar e comprar como se fosse em uma exchange tradicional. Como se fosse entrar em um aplicativo do banco e comprar produtos\”, diz Rodrigues. Hoje, as negociações no Brasil são feitas individualmente entre os vendedores e compradores.
Segundo Rodrigues, a B4 já recebeu 300 pedidos de empresas interessadas em vender créditos de carbono na plataforma. Outras 30 já teriam demonstrado interesse em comprar. A B4 foi fundada no último dia 16, mas deve começar a operar nas próximas semanas.
De acordo com Rodrigues, a verificação dos registros será feita com base em banco de dados públicos e notícias disponíveis na internet.
São incertas, porém, as regras utilizadas pela B4 nessa análise. E isso preocupa as empresas. \”Nenhuma empresa da aliança falou que vai colocar o crédito nessa bolsa, porque não entendeu ainda o que está acontecendo\”, diz Dallan.
Até agora, apenas 1% de todos os créditos de carbono submetidos à listagem na B4 passaram pelo crivo da plataforma.
Outro problema apontado pela aliança é a possível criação de um mercado secundário de carbono a partir da plataforma. Nesse caso, os créditos não seriam comprados apenas por empresas interessadas em compensar a emissão de carbono na natureza. Mas também por investidores interessados em ganhar com a valorização desses títulos —a exemplo do que acontece com ações de empresas listadas em bolsas de valores.
Questionada, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) informou que a B4 não tem registro para atuar no mercado de capitais. O governo federal discute a regulação do mercado de carbono, mas não há indícios que mantenha contato com a nova bolsa. A Folha questionou o Ministério da Fazenda sobre o tema, mas a pasta disse que não vai comentar a criação da B4.
Fato é que, se assim funcionar, tais transações poderiam mudar a atual lógica do mercado voluntário de carbono. Hoje, as empresas retiram os créditos do mercado assim que os compram; ou seja, avisam a certificadora responsável pelo título que ele não está mais disponível. Com a lógica do mercado secundário, porém, não haveria a retirada do crédito e ele poderia circular pelo mercado. Essa prática, segundo especialistas, proporciona fraudes.
Esse problema não é novo. No ano passado, a Verra organizou uma discussão pública em seu site sobre o assunto. Empresas vinham fragmentando os créditos de carbono e vendendo seus fragmentos para terceiros. Por exemplo: um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 evitada na natureza. Nesse caso, se uma empresa ou pessoa física quisesse compensar menos, ela poderia comprar um desses fragmentos.
Acontece que as certificadoras trabalham, geralmente, com créditos de carbono e não com partes deles. Assim, todos os fragmentos estão atrelados a apenas um registro, e a transação de qualquer um deles pode fazer com que as entidades percam ele de vista –facilitando, dessa forma, a duplicação da venda.
Essas transações são feitas, geralmente, por tokens –como a B4 propõe. \”O problema não é a tecnologia blockchain, mas a falta de interligação entre a informação da Vera, por exemplo, com a de algumas plataformas de venda\”, diz Luciana Vianna Pereira, advogada especialista em ESG e finanças sustentáveis.
A B4 diz que permitirá a venda de fragmentos de crédito de carbono \”para que pessoas físicas também possam ter acesso\”. Além disso, a empresa afirma estar \”se movimentando para estabelecer uma parceria com uma certificadora séria e confiável\”.
O mais importante a B4 parece já ter conseguido: atenção. \”Quando o mercado regulado for criado no Brasil, o governo escolherá por um ou duas plataformas para a venda. E a B4 deve estar de olho nisso\”, afirma Ronaldo Seroa da Motta, professor de economia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Fonte: Folha de São Paulo