ESG: Investimentos com metas sociais têm potencial para crescer no pós-pandemia
Aumento da desigualdade pressionou empresas a colaborar e a incluir impacto social positivo na rota de crescimento
Extrapolando o colapso nos hospitais, a pandemia de Covid-19 veio acompanhada do empobrecimento da população no Brasil. A urgência levou a uma tendência de ampliação da filantropia, com doações do setor privado somando mais de R$ 7 bilhões, segundo monitoramento da Associação Brasileira de Captadores de Recursos. Empresas envolvidas neste movimento agora miram em transformações estruturais com os investimentos sociais, que deixaram de ser sinônimo de caridade e têm entrado na estratégia de negócios.
A maior parte destes recursos foi doada por empresas a instituições do Poder Público e do terceiro setor, com experiência prévia – o que indica uma preocupação com o uso correto do montante investido. O movimento levou o Brasil a subir para a 54ª colocação no World Giving Index, ranking de solidariedade organizado pela instituição britânica Charities Aid Foundation com 114 países. Em comparação com a média da última década, o Brasil subiu mais de 20 posições.
As maiores doações registradas no período têm a preocupação de promover apoio a políticas públicas por parte das empresas. Em certa medida, o empenho de grandes montantes também foi aliado à expectativa de perenidade além da crise sanitária. Devido a essa característica, as iniciativas deixam de ser consideradas caridade e passam a ser identificadas como um investimento social.
Nesse sentido, a atenção se volta às possibilidades de aliar crescimento dos negócios a impactos na sociedade de forma mais robusta. Dentro do direcionamento de negócios com preocupações ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês), já havia se tornado praticamente mandatório – para atrair o olhar dos investidores – mitigar práticas poluentes e de representatividade racial e de gênero.
“Há disposição, mas ainda estamos em uma fase de aprender a dar transparência e estabelecer métricas que sejam capazes de mostrar as relações positivas no cumprimento de metas sociais ou mesmo nas ambientais”, avalia Marcelo Marcelo Linguitte, diretor de operações, parcerias estratégicas e mobilização de recursos da Rede Brasil do Pacto Global da ONU.
A iniciativa, que tem cerca de 150 empresas comprometidas com desenvolvimento sustentável no Brasil, se prepara para lançar um observatório para acompanhar as metas das companhias. Essa transparência permitiria entender como políticas anunciadas estão sendo de fato implementadas e os esforços – inclusive financeiros – para isso.
Quando se fala em investimento, ainda é incipiente no mercado brasileiro atrelar captação de recursos pelas empresas a objetivos sociais – isto é, o S da sigla ESG, hoje onipresente. Por enquanto, o principal modelo é o da emissão de dívida com características ESG. Os chamados títulos verdes, focados no meio ambiente, já são populares e usados tanto por companhias abertas brasileiras quanto por organizações sociais e startups.
O setor está em plena expansão: até o começo de julho foram R$ 54 bilhões em captações relacionadas à sustentabilidade (que incluem desde títulos para manutenção de florestas aos ligados à desigualdade social) por empresas nacionais, segundo acompanhamento da Sitawi Finanças do Bem, que atua como avaliadora independente sobre os destinos das emissões.
Esse volume supera o recorde de 2020, quando foram captados R$ 28 bilhões, quase três vezes mais do que no ano anterior. Já os títulos unicamente sociais praticamente somem nessa conta: eles correspondem a apenas 5% do total de operações do tipo mapeadas desde 2015.
Nessa seara, há os títulos verdes, sociais ou híbridos, em que os recursos captados são ‘rotulados’ para aplicação direta a projetos de impacto. O ideal é que, antes da emissão, seja apresentado um plano sobre o destino e periodicamente atualizações, feitas de forma independente, do investimento.
Os títulos sociais, por exemplo, podem conceder crédito a micro e pequenas empresas, com faturamento inferior a R$ 3,6 milhões, além de financiar empresas com liderança feminina ou negra, ou iniciativas que estão em localidades vulneráveis com baixo índice de desenvolvimento humano.
“Nesse caso, como geralmente as interessadas são empresas de porte menor, pouco acostumadas a acessar o mercado de capitais, o custo pode se tornar um impeditivo. Os títulos verdes hoje são mais viáveis porque os bancos se estruturaram para isso e impulsionam essas operações”, diz Cristóvão Alves, gerente de finanças sustentáveis e ESG da Sitawi.
Em junho, a fintech Gyra+, que concede crédito para micro e pequenos negócios, levantou R$ 120 milhões com uma emissão de v. A demanda superou a oferta em duas vezes e cerca de 20 fundos dedicados à renda fixa (não necessariamente ESG) ficaram com os papeis. Já a Pravaler, que oferece financiamento estudantil, emitiu R$ 20 milhões em títulos sociais, mas para apenas um investidor. Em certa medida, ambos os negócios dialogam com as necessidades sociais no rastro da pandemia.
Outra possibilidade de investimento são os sustainability-linked bonds (SLB), em que o uso dos recursos não precisa ter finalidade ESG, mas a variação dos juros está atrelada ao cumprimento, pela empresa, de metas de sustentabilidade. Neste ano, esse foi o modelo que mais cresceu. Especialmente para as grandes companhias, este investimento tem um potencial mais atraente por vincular diretamente metas com estratégia financeira – e pode ser a oportunidade para a frente social crescer nessa seara.
Em setembro passado, a Suzano inaugurou esse tipo de emissão entre empresas brasileiras ao captar US$ 750 milhões com taxa ligada à meta de redução das emissões de gás carbônico até 2030 – se a partir de 2025 ela não for batida, a empresa pagará mais 0,25% em juros todos os anos. Em uma década, se espera diminuir em cerca de 10% o CO2 dispendido por tonelada de papel e celulose produzidos. Por conta da característica verde, a negociação rendeu a menor taxa da história da companhia, de 3,95% ao ano.
Depois disso, outras empresas abertas, como Movida e Klabin, fizeram operações semelhantes, ligadas a ambições ambientais. Em abril, a Natura captou US$ 1 bilhão com vencimento em sete anos e juros a 4,1% ao ano, incluindo como metas, além da redução de emissões de gás carbônico, o aumento do uso de plástico reciclado. O descumprimento, apurado no último ano, acarretaria aumento de 0,65% na taxa no período restante.
Em junho, a JBS captou montante também de US$ 1 bilhão no primeiro SLB envolvendo frigoríficos no Brasil, com o objetivo de mitigar emissões poluentes, mas não incluiu nas previsões ações relacionadas à cadeia de fornecedores, de onde partem até 90% das emissões da indústria, advindos da criação de gado e pastagens. Contratada pela JBS para avaliar as metas de sustentabilidade, a consultoria ISS ESG afirmou que o indicador de desempenho usado para mensurar o impacto é relevante, mas não significativamente para o modelo de negócios da companhia. A empresa tem entre suas metas para o meio ambiente se tornar completamente neutra em carbono até 2040 – isso significa reduzir emissões e sequestrar as que não conseguir.
Dois casos de investimentos envolvendo metas sociais em grandes companhias se destacaram recentemente. Após ter sido estreante em SLBs, a Suzano voltou ao mercado para uma operação de US$ 1 bilhão, dessa vez voltada a reduzir em 15% a captação de água em todas as suas operações até 2030 e contar com ao menos 30% de mulheres em cargos de liderança até 2025.
Enquanto a primeira meta é uma pressão antiga em relação ao setor, que tem uso hídrico intensivo, a segunda desafia a empresa a atingir um objetivo social que se tornou obrigatório no mercado. Porém, ainda não há empresas usando o mesmo mecanismo para impulsionar diversidade em posições de liderança.
Também dividindo as metas em duas frentes, o Fleury lançou, neste mês, debêntures com o mesmo mecanismo de um SLB. Os juros da dívida de R$ 1 bilhão, a ser emitida em três séries, aumentam se, além de não reduzir descarte de resíduos biológicos, a companhia não atingir o patamar de um milhão de clientes das classes C, D e E em sua plataforma digital até 2026.
Evidentemente faz parte da estratégia de negócios da empresa atrair esse público, mas também foi oferecido como título ESG por seu caráter de ampliar acesso à saúde. Assim, foi a primeira emissão com meta social no mercado brasileiro, que pode dar pistas sobre a adesão de investidores. Geralmente, essas operações são feitas no exterior. Antes da Fleury, a Via (antiga Via Varejo) havia emitido debêntures ligadas à ampliação do uso de energia renovável.
Enquanto o Brasil ainda engatinha, a composição da dívida ESG é mais equilibrada no mundo. Em 2020, foram emitidos US$ 732 bilhões deste tipo de dívida globalmente, aumento de 29% em relação ao ano anterior. Enquanto a venda de green bonds cresceu 13%, saltando para US$ 305 bilhões, a emissão de títulos sociais teve aumento de sete vezes, para US$ 147,7 bilhões, segundo relatório da Bloomberg NEF.
“A emissão de dívida sustentável tem crescido de forma expressiva no Brasil. Embora sejam mais objetivos verdes, não há nenhuma razão para que temas sociais não possam ser devidamente considerados, visto que há demanda e há métricas que podem ser usadas”, avalia Rodrigo Tavares, especialista em fianças sustentáveis e presidente do Granito Group. O profissional conta que as emissões podem beneficiar também o setor público. A Guatemala, por exemplo, foi o primeiro país a emitir um social bond soberano, para atuar no combate à Covid-19.
No começo de julho, como parte da estratégia de se voltar para a concessão de crédito e serviços para setores sociais mais críticos, o BNDES iniciou chamada pública para selecionar três fundos de investimento de impacto socioambiental, o que pode atrair mais possibilidades na área. A ideia é que o banco aplique até 25% do valor de cada fundo, que deverá captar o restante no mercado.
A instituição espera atrair mais de R$ 800 milhões de capital privado para investir em setores como gestão de resíduos, moradia, acessibilidade digital, meio ambiente, transporte, recursos hídricos, saneamento básico e educação. Serão selecionados dois fundos com foco em empresas e que apresentem receita operacional bruta de até R$ 90 milhões no ano anterior ao aporte. Além disso, o BNDES considerará a diversidade dos gestores dos fundos.
Letícia Paiva – Repórter em São Paulo
Fonte: JOTA