Trabalhadores avaliavam seus ex-patrões anonimamente. Até que um chefe foi à Justiça
Site foi obrigado a revelar quem havia criticado empresa; casos já chegam à Justiça do Trabalho
Fernanda Brigatti
São Paulo
A ideia é relativamente simples. Um site agregador de anúncios de vagas que é também uma comunidade onde funcionários e ex-funcionários compartilham anonimamente suas avaliações sobre os empregadores, detalham salários e apontam prós e contras do trabalho no lugar.
No entanto, o espaço acabou ganhando também um outro propósito: um fórum onde ex-funcionários expiavam suas mágoas e usavam do anonimato para derrubar a reputação de antigos patrões, muitos até motivados por novos empregos em concorrentes.
Foi com um argumento semelhante a esse que uma consultoria com sede em São Paulo conseguiu não somente tirar comentários do ar, como também acessou nomes e emails de seus detratores.
Agora, quase um ano depois da primeira decisão provisória favorável à empresa (depois confirmada pela Justiça; a ação já foi encerrada), as informações obtidas pelo site começaram a ser usadas também em ações trabalhistas. Segundo apuração da Folha, a Gradus Consultoria usou esses dados em pelo menos dois processos movidos por ex-funcionários contra a empresa.
Em um deles, a consultoria pediu a desqualificação de uma testemunha que, segundo seus advogados, era um ex-funcionário que, depois de mudar de emprego e passar a trabalhar para um concorrente, deixou avaliações negativas sobre a empresa no Glassdoor —o que a companhia considerou uma campanha difamatória.
No pedido de desqualificação, o ex-funcionário foi identificado por um email que não era o habitual –era aquele usado no registro de sua avaliação sobre a antiga empregadora. Foi quando ex-empregados souberam que seus comentários sigilosos não estavam protegidos.
Um deles percebeu, na mesma época, que seu comentário tinha sido excluído da página da empresa.
Ao questionar a plataforma, o time jurídico da Glassdoor respondeu: \”Apesar de ter vencido a grande maioria de casos desse tipo no Brasil nos últimos anos, perdemos esse. Como você, estamos muito desapontados e compartilhamos da sua frustração com esse resultado\”.
A Gradus não foi a primeira a ir à Justiça contra a Glassdoor ou a LoveMondays, empresa brasileira com o mesmo perfil, comprada pela americana em 2016. Mas foi uma das primeiras a conseguir uma sentença favorável no Brasil.
A defesa da Gradus diz que não pode se manifestar sobre o assunto, pois o processo tramitou em segredo de Justiça.
A Glassdoor foi procurada por meio de seu departamento de relações públicas nos Estados Unidos, mas não respondeu. O escritório brasileiro que a representa na Justiça não quis comentar.
Justiça ainda é ambígua na proteção de dados, afirma especialista
Para José Renato Laranjeira, da Coalizão Direitos na Rede, o caso da Glassdoor mostra como a Justiça vem sendo ambígua na esfera da proteção de dados. A entrega de nomes, emails e IPs é desproporcional e poderia ter ficado restrita aos dados de conexão, afirma.
O Marco Civil da Internet, de 2014, prevê o acesso aos registro de conexão ou de acesso, mas estabelece que o pedido deve demonstrar indícios de ilicitude, justificar a utilidade dos registros para investigação ou instrução e definir o período ao qual se referem.
A fragilidade em decisões como essa envolvendo a Glassdoor ocorre porque, segundo Laranjeira, o enquadramento desse indício de ilicitude não é tão simples.
\”Quando a gente fala de uma empresa, não existe honra subjetiva, apenas a objetiva. E aí há necessidade de demonstração clara e objetiva de que a veiculação daquilo [os comentários] violou a honra objetiva dela, algo que é muito difícil\”, afirma Laranjeira, que é também fundador do Lapin (Laboratório de Políticas Públicas e Internet).
Na Justiça, a Glassdoor defende que a determinação de quebra do sigilo dos comentários está em \”desconformidade com os precedentes\” do próprio TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que barrou tentativas semelhantes de acesso a dados.
A Glassdoor se apresenta, em seu site, como uma \”comunidade de carreiras que depende da opinião de profissionais como você sobre as empresas\”. A mensagem, que aparece logo que o usuário se cadastra na página, tem ainda um complemento: \”É sigiloso e leva apenas um minuto\”.
Laranjeira, da Coalização Direitos na Rede, vê na decisão o risco de enfraquecimento desse tipo espaço de manifestação. O comentário sobre um empregador é feito num contexto de subordinação, no qual quem escreve está em situação mais frágil. O anonimato, nesse caso, protege esse lado mais frágil.
No recurso com o qual tentou reverter a abertura de dados, a Glassdoor defendeu que os comentários não eram de fato anônimos, por mais que não fossem identificados. Porém a revelação de nomes e outros dados cadastrais dependia das condições previstas no Marco Civil, algo que, para a empresa, não tinha sido demonstrado.
A empresa também defendeu que os comentários publicados nas páginas das empresas passam por uma equipe de moderação, que controla o conteúdo. Os comentários feitos por funcionários e ex-funcionários também podem ser respondidos pelas companhias.
O processo da Gradus contra a Glassdoor correu em segredo de Justiça na primeira instância. Os recursos no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), porém, seguem abertos.
A Gradus pediu concessão de liminar para acessar todos os dados dos perfis responsáveis por 12 comentários, os logs de acesso e os dados de conexão dos autores desses comentários.
Segundo dados do processo, a companhia levantou a suspeita de que haveria uma campanha de difamação pro meio da plataforma. A empresa sustentava a hipótese em uma mudança de perfil das avaliações publicadas em março, abril e maio de 2021.
Sites conseguem em tribunal garantir sigilo de ex-funcionários
Para a defesa da Glassdoor, não restam dúvidas de se tratou de uma quebra de sigilo de dados que viola o Marco Civil da Internet.
Em outras ações que tramitaram no TJ-SP, a Glassdoor e a LoveMondays conseguiram barrar tentativas de acesso aos dados dos trabalhadores que compartilharam suas opiniões na rede.
Em um deles, uma instituição de ensino de Minas Gerais tentou identificar os autores dos comentários que considerou \”ofensivos e proporcionais\” e pediu indenização moral de R$ 10 mil.
A juíza Edna Kyoko Kano, da 18ª Vara Cívl de São Paulo, considerou que comentários como \”ambiente de trabalho coercitivo\”, \”uma bagunça\”, e \”pessoas com caráter duvidoso\” eram apenas críticas e expressão do pensamento.
Em outro, uma empresa do setor de infraestrutura tecnológica também não conseguiu derrubar os comentários de ex-funcionários e ex-estagiários.
\”Compreende-se que a autora queira preservar sua imagem, porém se revela inafastável a liberdade de pensamento nas avaliações publicadas no sítio eletrônico da requerida\”, escreveu o juiz Guilherme Fernandes Cruz Humberto, da 9ª Vara Cível de Campinas, na decisão que negou o pedido.
Para o juiz Paulo Henrique Ribeiro Garcia, da 1ª Vara Cível do Foro Regional XI de Pinheiros, o espaço para comentários era de \”livre manifestação de pensamento\”. Em decisão que negou o pedido feito por um laboratório, ele considerou que não havia requisitos legais para a quebra de sigilo de dados.
Fonte: Folha de São Paulo