Plenário Virtual do STF deve repetir protagonismo em 2022
De acordo com dados do próprio tribunal, em 2021, foram 15.192 decisões colegiadas em ambiente virtual
Dois olhares distintos precisarão ser lançados sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2022, tendo um foco apenas: o plenário virtual, que se consolidou no ano passado como o locus das principais decisões da Corte. Dois olhares distintos para compreender a relação do tribunal com os demais Poderes, especialmente com o governo Bolsonaro no seu último ano de primeiro mandato, e outro olhar mais direcionado para o balanço interno de poder – para as estratégias individuais de cada um dos ministros da Corte e para a formação de maiorias em temas sensíveis.
Fazendo um retrospecto, olhando para 2021, é possível notar que várias questões sensíveis foram direcionadas para o plenário virtual pelos relatores, fazendo com que a decisão resultasse do somatório de votos escritos disponibilizados no sistema eletrônico do tribunal e, portanto, sem interação dos ministros em público, sem debates, mas não necessariamente sem a devida publicidade e debate na opinião pública.
Um exemplo notório foi a decisão do tribunal de bloquear as chamadas emendas de relator ao orçamento da União. A ministra Rosa Weber, monocraticamente, concedeu a liminar solicitada por partidos de oposição, colocando o tribunal em oposição aos comandos da Câmara e do Senado. A ministra liberou imediatamente a liminar para referendo do plenário e solicitou uma sessão extraordinária do plenário virtual. Sua decisão foi referendada pela maioria, ampliando a legitimidade da liminar (não era mais apenas a decisão de uma integrante da Corte, mas do colegiado). E, nesse período, o assunto foi amplamente debatido pela imprensa e pelos atores políticos.
Outros temas de destaque decididos no plenário virtual em 2021 foram a instituição do renda básica cidadã, a impossibilidade da União requisitar vacinas e insumos dos estados brasileiros, a realização do Censo demográfico em 2022, e casos tributários bilionários como a cobrança de ICMS majorado para setores como energia elétrica e telecomunicações.
Esse cenário deve se repetir em 2022. Apesar de a pauta de julgamentos do plenário físico já estar disponível – agenda que foi antecipada pelo JOTA aos seus assinantes -, essa será apenas uma parcela ínfima do que o Supremo deverá decidir neste primeiro semestre do ano. Só será possível saber o que será julgado no virtual quando os processos forem liberados por seus relatores na semana anterior ao início do julgamento.
O que se pode observar é um Supremo que se adapta progressivamente à sistemática de votação virtual e menos dependente da agenda do plenário presencial para discutir temas relevantes. De acordo com dados do próprio tribunal, em 2021, foram 15.192 decisões colegiadas – em ambiente virtual (tanto processos de atribuição das Turmas, quanto de competência do plenário). No plenário presencial foram 225 decisões, o que corresponde a apenas 1,45% do que foi decidido pelo colegiado do tribunal.
Pesquisadores e advogados consultados pelo JOTA defendem que a ferramenta chegou aos poucos, ganhou relevância na pandemia da Covid-19 e tende a ser um espaço de deliberação cada vez mais usado na Corte, não só em volume de processos, mas na variedade de matérias, inclusive, aquelas classificadas como de máxima importância para o país. Porém, eles ponderam que o ambiente virtual trouxe novos desafios: como a mudança no papel do presidente do Supremo em relação à pauta, as alterações de jurisprudência em ambiente sem debate qualificado, a menor participação das partes e a interrupção do julgamento por destaque, em que se recomeça a análise da matéria em plenário físico.
Um dos pontos mais vantajosos do plenário virtual, segundo especialistas, é a diminuição do acervo. Em 2006, antes de qualquer possibilidade virtual, eram 150 mil processos. Em 2020, com a ampliação das competências do plenário virtual, o volume diminuiu para 26.256 e em 2021 a quantidade ficou em 23.791.
As múltiplas funções atribuídas pela Constituição brasileira ao Supremo transformou a Corte em arena de vários tipos de conflitos e, consequentemente, em um tribunal super demandado. Diferentemente de outras cortes constitucionais pelo mundo, no Brasil, as atividades do STF vão além da análise de inconstitucionalidade das leis e atos normativos em face da Constituição. O Supremo recebe recursos particulares, assim como é o espaço de julgamento de personalidades com foro privilegiado, como parlamentares e o presidente da República.
Segundo dados do próprio tribunal, somente em 2021, foram recebidos mais de 77 mil processos. A Suprema Corte Americana recebe, anualmente, 7 mil pedidos de revisão de processos e analisa de 100 a 150. Dessa forma, conforme explica o professor da FGV de São Paulo, Oscar Vilhena Vieira, o plenário virtual é uma consequência da distorção de origem e sobrecarga de competências do Supremo.
“O plenário virtual é uma solução técnica e eficiente para o problema de sobre competências que o tribunal tem. Evidente que tem problemas. Mas, ele veio para ficar enquanto o tribunal ou enquanto a sociedade brasileira entender que o Supremo mantém em suas mãos todas essas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição de 1988”, diz o professor.
Dessa forma, especialistas ressaltam que, se por um lado, a ferramenta é uma resposta para o excesso de demandas, por outro, traz distorções que precisam ser amenizadas e corrigidas, como por exemplo, a menor participação das partes durante o julgamento. Pela sistemática atual, o advogado pode mandar um vídeo com a sustentação, no entanto, como não há interação, ele não pode, por exemplo, pedir a palavra para fazer uma elucidação de fato que pode ser crucial para a resolução do caso a favor de seu cliente.
Ponderação de advogados
Um ponto bastante criticado pela advocacia é a mudança de jurisprudência no ambiente virtual, sem o debate qualificado. Inclusive, entidades ligadas à advocacia, como o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA), devem apresentar no início do ano de 2022 uma carta aberta ao presidente do STF, Luiz Fux, ressaltando os impactos negativos dos julgamentos virtuais, em especial, quanto às causas tributárias. Em 2021, as associações fizeram o mesmo movimento.
“Essa sistemática de julgamento acaba gerando um resultado com decisões que são contraditórias, muitas vezes, pouco fundamentadas, equivocadas e também geradoras de mudança de jurisprudência pacificada no Supremo, o que a gente chama na teoria dos precedentes de overruling”, critica Gustavo Brigagão, presidente do CESA. “Ou seja, a superação de um precedente em um plenário em que não houve discussão entre os ministros e que não teve sustentação oral por parte dos advogados”, complementa.
Na análise de Brigagão, houve mudança de jurisprudência por exemplo no julgamento que decidiu pela constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB). Para ele, houve alteração de entendimento em relação ao recurso que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Em sua visão, sob o argumento de ser um regime optativo, o STF entendeu que o contribuinte teria que aceitar o ônus e os bônus da escolha feita, deixando de lado, inclusive, o conceito de receita bruta previsto na Constituição.
As entidades da advocacia, como o CESA, defendem alterações na sistemática do plenário virtual. Entre os ajustes sugeridos está a vedação de temas em que o exame possa resultar na modificação de orientação jurisprudencial anteriormente firmada no STF. As entidades pedem também a automática suspensão do julgamento de processos sempre que apresentadas questões de ordem ou esclarecimento de fato, até que os pedidos sejam efetivamente apreciados, ao menos quanto ao seu cabimento.
Alteração no papel do presidente
A consolidação do ambiente virtual como um espaço de julgamento no Supremo introduziu também alterações no próprio funcionamento do STF, como por exemplo, a diminuição do poder do presidente sobre a pauta a ser apreciada na Corte. Para as votações presenciais, o presidente da Corte monta a pauta do que deve ser julgada. Já no plenário virtual, é o relator que insere o processo na lista de votação.
“Uma coisa que a gente vinha criticando há muitos anos é o enorme poder que o presidente tem sobre a agenda do Supremo. Com o plenário virtual, esse poder ficou difuso e foi distribuído entre todos os ministros. O ministro não precisa ficar aguardando o presidente para colocar em plenário um processo de que é relator, se ele acha que é uma questão importante e o presidente não concorda, joga no plenário virtual. Isso é algo muito positivo do plenário virtual: a desconcentração de poderes do presidente”, defende o professor Oscar Vilhena Vieira.
Outra alteração trazida com o plenário virtual são os mecanismos de interrupção do julgamento. No plenário virtual, além do pedido de vista – que suspende o julgamento até que o ministro que pediu a paralisação devolva o processo para análise -, existe a figura do destaque – em que um ministro retira a votação do virtual e pede para que o julgamento passe para o presencial de modo a recomeçar a análise.
De acordo com dados preliminares de uma pesquisa realizada pelo Supremo em Pauta, um projeto da FGV de São Paulo, de junho de 2019 a setembro de 2021 ocorreram 636 destaques de julgamentos virtuais, incluindo as duas turmas e o plenário.
Para Ana Laura Pereira Barbosa, pesquisadora do Supremo em Pauta da FGV/SP e doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP), o mecanismo do destaque é importante porque pode levar para o ambiente físico processos que necessitam de mais debate. No entanto, ela pondera que reiniciar o julgamento pode trazer consequências que precisam ser melhor analisadas, como, por exemplo, a perda de votos de ministros que se aposentam, como ocorreu com o ministro Marco Aurélio. Com a aposentadoria do magistrado, foram desconsiderados os votos dele a favor da edição de lei para taxar grandes fortunas, contra o monopólio dos serviços postais pelos Correios e determinando que o presidente Jair Bolsonaro deveria desbloquear um advogado no Instagram.
“O grande problema do pedido de destaque é que ele dá um reset no julgamento, então ele pode ser uma ferramenta usada estrategicamente em casos importantes por outros ministros. Por exemplo, se o caso já teve 11 votos, mas ainda está dentro do período de duração do julgamento, o ministro pode pedir destaque e todos esses 11 votos já proferidos terão que ser colhidos de novo no ambiente físico”, afirma. “O desafio para o tribunal é como disponibilizar essa ferramenta para forçar a remessa de um caso para o ambiente físico e evitar que essa ferramenta tenha as consequências negativas do ato de resetar o julgamento”, complementa a pesquisadora.
Flávia Maia – Repórter em Brasília
Felipe Recondo
Fonte: JOTA