Desembargador interferiu até em decisões de colegas, mostra investigação sobre propinas no TJ-MS

A Operação Ultima Ratio, da Polícia Federal, indica que ao menos um desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, sob suspeita de ligação com venda de sentenças, também tentou interferir indevidamente em decisões dos próprios colegas da Corte. Pelo menos um caso citado no inquérito mostra que um “cliente” do esquema de corrupção foi poupado de condenação por porte ilegal de armas de fogo de uso restrito. Ao tentar interceder na decisão do relator, o desembargador Marcos José de Brito Rodrigues anotou: “O cara disse que o Exército quer a solução do caso. Caso contrário ele perderá as armas que são todas registradas no Exército.”

O Estadão pediu manifestação do magistrado, via assessoria de imprensa do TJ-MS. O espaço está aberto também para o tribunal.

Pormenores dessa outra linha de investigação constam de relatório de 850 páginas da Polícia Federal encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) com pedido de autorização para abertura da Operação Ultima Ratio, em outubro.

Para você

O Estadão tem revelado, ao longo dos últimos meses, detalhes de inquéritos que mostram como eram operados esquemas de venda de sentença em ao menos cinco tribunais estaduais.

Lobistas e advogados se interligaram também para chegar a gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça – quatro servidores da Corte estão sob investigação. O STJ afirma que nenhum ministro está sob suspeita.

inco desembargadores do Tribunal de Mato Grosso do Sul estão afastados de suas funções – Marcos Brito, Vladimir Abreu da Silva, Alexandre Aguiar Bastos, Sideni Soncini Pimentel e Sérgio Fernandes Martins, o presidente do TJ-MS – por 180 dias. A ordem é do ministro Francisco Falcão, do STJ. Todos os desembargadores estão sendo monitorados com tornozeleira eletrônica.

Um sexto magistrado, o desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, aposentado desde junho, também é investigado. Agentes da Polícia Federal apreenderam na casa dele quase R$ 3 milhões em dinheiro vivo.

Ao analisar mensagens via WhatsApp do desembargador Marcos Brito, os investigadores se depararam com a história de um certo Firmino Filho, que procurou o magistrado para pedir “mais uma gentileza”. “Já te incomodei demais, sempre serei grato ao senhor”, escreveu Firmino. “Precisava de mais um favor, se não vão tomar minhas armas”, escreveu.

Na ocasião, setembro de 2020, o magistrado já havia dado um despacho favorável a Firmino no âmbito de uma ação milionária, investigada como um caso de venda de sentenças.

Após receber o pedido, junto do número de um processo em curso no Tribunal de Justiça do Estado, Marcos Brito respondeu que ia verificar. Logo em seguida, o desembargador repassou a Marcelo, seu principal assessor, o número do processo de interesse de Firmino Filho e mandou que descobrisse quem era o desembargador relator. Decorrido menos de um minuto, o assessor respondeu que o caso estava sob relatoria do desembargador Ruy Celso.

No dia seguinte, Marcos Brito chamou Ruy Celso no WhatsApp para falar do caso. “Bom dia. Esse processo tem parecer favorável do MP pela extinção, o cara me ligou e disse que o Exército quer a solução do caso, ou contrário ele perderá as armas que são todas registradas no Exército. Grato. Abraço.” Ruy Celso respondeu que o ouvidor do TJ – o próprio Marcos Brito – já lhe havia passado a mensagem. “Já estou vendo”, disse.

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O processo em questão era um recurso no qual Firmino recorria da condenação que recebeu por porte ilegal de armas de fogo de uso restrito e permitido. Em fevereiro de 2021, por unanimidade, o Tribunal de Justiça desclassificou o crime para porte de arma de uso permitido e, em seguida, declarou a extinção da punibilidade de Firmino, sob o entendimento de que o caso estava prescrito. Na ocasião, a Corte seguiu o voto de Ruy Celso.

A PF não lança suspeitas sobre Ruy Celso, vez que, antes das mensagens de Marcos Brito, o desembargador já havia levantado a questão da desclassificação dos crimes por alteração da legislação – armas de uso restrito passaram a ser de uso permitido – e o Ministério Público já havia dado parecer sobre o caso. O magistrado, que não é investigado, não se manifestou.

“Nesse sentido, aparentemente, a decisão de Ruy Celso seria a mesma, independente da interferência de Marcos Brito”, anotam os investigadores.

Mas os investigadores entendem que Marcos Brito “interferiu indevidamente na decisão a ser proferida por Ruy Celso, visando beneficiar Firmino Filho, novamente apontando para recebimento de propina por Marcos Brito”.

Segundo o inquérito, há “fortes indícios” de que o desembargador recebeu propina de Firmino para proferir decisões em favor de seu filho, assim como para interferir na decisão do colega Ruy Celso.

Dias após sair beneficiado no processo relatado por Ruy Celso, Firmino voltou a acionar Marcos Brito. E o desembargador deu outra decisão em favor do filho dele.

A PF ainda diz ter identificado diversos pedidos de Ruy Celso a Marcos Brito, demonstrando, na visão da corporação, a “troca de favores” entre magistrados.

Trafico de influência

A Operação Ultima Ratio descobriu que o desembargador Marcos Brito também teria praticado tráfico de influência no âmbito de um processo para beneficiar o procurador de Justiça Marcos Antônio Martins Sottoriva, do Ministério Público estadual. Sottoriva também é fazendeiro. O Estadão pediu manifestação do procurador.

Para atender o procurador, Brito teria encarregado um assessor de redigir o texto de uma liminar e, ainda, assinar o documento por ele.

A decisão favorável aos interesses de Sottoriva se deu em um processo de compra de uma fazenda de R$ 5 milhões.

A decisão foi assinada pelo desembargador Marcos José de Brito Rodrigues, mas a PF suspeita que ele sequer se deu ao trabalho de ler os autos, nem mesmo de fazer o despacho. Os investigadores avaliam que o episódio, ocorrido em 2020, representa uma ‘decisão judicial em favorecimento indevido em razão do cargo de uma das partes’.

Eles consideram que o procurador foi beneficiado por ‘subterfúgio criado pelo juízo para obter vantagem em uma questão negocial em clara violação aos princípios da imparcialidade e da equidistância da jurisdição’.

A PF aponta relações próximas do desembargador com o empresário Andreson Gonçalves, que também se apresenta como advogado, e com o advogado Félix Jayme. Ambos são apontados como lobistas com atuação intensa em tribunais estaduais e superiores.

Os investigadores dão ênfase ao fato de Andreson ser dono de uma empresa que transferiu mais de R$ 1 milhão para Félix. O advogado sacou em espécie grande parte desse valor.

A PF resgatou mensagens em que Andreson deseja um ‘feliz Ano Novo’ a Marcos Brito e diálogos em que o lobista encaminha números de processos ao desembargador. Algumas ações têm alto valor, somando R$ 64 milhões.

Os investigadores verificaram que o empresário lobista compartilhou com o desembargador documentos sigilosos de inquéritos em tramitação no STJ, como mostrou o Estadão.

O rastreamento aponta, ainda, conversa em que Andreson envia a foto de um jatinho usado por ele e sua mulher. “Muito chic”, disse o desembargador. A avaliação da PF é que, considerando os extratos de processos enviados por Andreson a Marcos Brito, há “forte indícios de que o desembargador estivesse recebendo propina de Andreson”. O Estadão busca contato com o empresário. O espaço está aberto.


Fonte: Estadão

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