Inteligência artificial promoverá mais desigualdade se não houver inclusão digital, diz CEO da Tupy

Embora o tema de inteligência artificial gere interesse ao redor do mundo, há um outro passo que precisa ser dado, antes, para que essa nova realidade não gere mais distorções sociais: a inclusão digital efetiva. “De tudo que falamos, inclusão digital é muito importante, antes da inteligência artificial, porque senão teremos um grupo de pessoas que está dentro e um grupo que está fora. Esse grupo que está dentro, com a inteligência artificial, vai avançar muito. E o grupo que está fora vai ficar muito distante. Então, promoveremos ainda mais desigualdade”, afirma Fernando de Rizzo, CEO da Tupy, empresa de bens de capital e fabricante de motores e geradores de energia.

Ele lidera a força-tarefa do B-20, braço empresarial do G-20, que debate os temas de transformação digital. “O nosso problema está no mundo físico. O problema do mundo físico é dar saneamento, água potável, habitação segura. Criar condições de vida melhores, alimentos baratos. E toda essa tecnologia só faz sentido se colaborar. Não podemos perder essa conexão, diz de Rizzo.

“Temos uma fração significativa da sociedade que não participa hoje. Globalmente, cerca de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso digital. No Brasil, por exemplo, cerca de 16% da população, ou 29 milhões de brasileiros, estão desconectados. Isso significa que essas pessoas estão sendo excluídas da nova economia e das oportunidades de gerar riqueza e acesso ao conhecimento”, afirma o empresário.

Incluir, diz ele, não é só dar acesso, mas também educar a população para o acesso digital. Os dados do B-20 mostram que o Brasil fica atrás quando o indicador medido é o de habilidades digitais. O País tem 30%, 17% e 3% da população com níveis básico, intermediário e avançado, respectivamente. A média dos países do G-20, no entanto, é mais alta: é 51%, 37% e 7%.

As recomendações do empresariado, organizadas pelo B-20, aos governos dos países do G-20 estão concentradas em três eixos: inclusão digital para pessoas e negócios, promoção da confiança cibernética e criação de ambiente de oportunidades através da inteligência artificial. As políticas de ação propostas incluem, entre outros tópicos, promover a transformação digital das Micro, Pequenas e Médias Empresas (MPMEs) através do acesso ao financiamento sustentável, um ambiente regulatório favorável e suporte especializado. Também citam a necessidade de ter padrões harmonizados de segurança cibernética e resiliência cibernética – geopoliticamente, um dos temas mais sensíveis em discussão.

Com relação à IA, Fernando de Rizzo diz que o Brasil precisa criar uma nova regulamentação, para atualizar as existentes (LGPD, Código do Consumidor) e alinhá-las com padrões internacionais. Ele também diz que o País não pode “perder esse trem”. “Precisamos correr, ele é rápido.”

O documento sobre transformação digital foi elaborado em parceria com a consultoria Bain. “Notamos uma disparidade no acesso e uso efetivo de tecnologias ainda existente entre os países do G-20, com apenas 67% das pessoas acessando a internet nos últimos três meses e 50% das micro, pequenas e médias empresas utilizando plataformas em nuvem. Além disso, a porcentagem de indivíduos com habilidades digitais básicas, intermediárias e avançadas ainda é baixa: 45%, 31% e 6%”, afirma André Bolonhini, sócio da Bain & Company e membro da prática Digital.

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A efetiva inclusão digital, por meio de regulações e PPPs que permitam a expansão da infraestrutura, é um passo fundamental para evoluir a confiança digital, equilibrando segurança e inovação, e fomentar a colaboração global para inovação responsável em inteligência artificial”, diz Bolonhini.

O Estadão publica, desde o último dia 14, uma série de entrevistas com os CEOs e executivos brasileiros que estiveram à frente das oito forças-tarefa do B-20. Eles abordam a situação do Brasil ante os demais países, em cada uma das áreas analisadas, e como enfrentar os principais desafios econômicos contemporâneos. Também falam de como tem sido a recepção do governo Lula às propostas encaminhadas pelo setor privado.

O que, na visão dos empresários, é crucial no debate sobre o mundo digital dentro do G-20?

Trouxemos um grupo de cerca de 40 tendências importantes e pedimos aos 165 membros que votassem nas oito mais relevantes e, depois, nas três prioritárias. A partir disso, construímos uma matriz de prioridades, identificando as três recomendações fundamentais. A primeira, e na nossa opinião a mais importante, é a inclusão digital. Estamos falando de políticas públicas para o desenvolvimento dos países, alinhadas com as diretrizes do G-20. Os princípios que o B-20 iria seguir são cinco: promover crescimento inclusivo e combater a fome, a pobreza e a desigualdade; acelerar a transição justa para emissões líquidas zero; aumentar produtividade por meio da inovação; reforçar a resiliência das cadeias globais de valor; e valorizar o capital humano.

Dentro desse conceito, a inclusão digital é essencial. Temos uma fração significativa da sociedade que não participa hoje. Globalmente, cerca de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso digital. No Brasil, por exemplo, 16% da população, ou 29 milhões de brasileiros, estão desconectados. Isso significa que essas pessoas estão sendo excluídas da nova economia e das oportunidades de gerar riqueza e ter acesso ao conhecimento. É fundamental inclusão digital para pessoas e negócios.

A segunda recomendação é sobre confiança digital, que envolve cibersegurança e a transmissão segura de dados.

A terceira recomendação é referente à inteligência artificial em destaque. A IA pode melhorar a vida das pessoas, eliminar gargalos e colaborar com o enfrentamento das mudanças climáticas, apesar de ser uma grande consumidora de energia. E isso evidentemente tem de ser considerado.

É um tema que estudamos muito na empresa que lidero. O mundo aumenta o consumo de energia todo ano, algo como 1,3%. A gente tem aumentado o uso de fósseis, por conta dessa diferença. A inteligência artificial pode ajudar a economizar isso, se formos capazes de usar isso para tomar melhores decisões no dia a dia, efetivamente começamos a colaborar com essa mudança.

Essa foi a construção fundamental e os debates foram em torno dessas três recomendações. Tem recomendações sobre expansão de rede, disparidade de habilidades digitais – precisamos letrar as pessoas sobre tecnologia –, e elas não podem ter medo, precisam ter confiança no sistema.

Como o Brasil chega nesse debate de transformação digital em comparação com os seus pares do G-20? Quais são os nossos maiores obstáculos ou vantagens?

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O Brasil tem um ecossistema de empresas, nacionais e multinacionais, que estão operando no Brasil. Então o P tem uma boa cobertura. Há uma oportunidade de eliminar alguns gargalos no Brasil utilizando tecnologia e alavancar as indústrias nas quais somos verdadeiramente competitivos. O Brasil tem vantagens competitivas reais. Agroindústria, qualquer indústria que tiver necessidade de energia, o Brasil será muito competitivo. Porque evidentemente temos muita biomassa no Brasil que está sendo desperdiçada, temos um potencial eólico muito forte, potencial solar muito forte, potencial de biocombustíveis muito forte, tudo isso. Então, a nossa compreensão é que essas tecnologias precisam ser aplicadas e ajustadas a essas necessidades. Nas empresas, tem um potencial muito grande de ganho de eficiência e competitividade. Precisamos eliminar essas barreiras, essas preocupações.

Também há um tema bastante relevante, que é sobre a harmonização de regulamentações. Precisamos criar uma nova regulamentação para IA, precisamos harmonizar as regulamentações existentes, expandindo-as para o uso da IA. Então, você pega a LGPD, você pega o Código do Consumidor, precisamos atualizá-las, alinhar com padrões internacionais. E é o que indicamos, e foi consenso do grupo, que precisamos harmonizar essas regulamentações entre os países, de modo que possamos estender o uso delas. Lembrando que fazemos inclusão digital, propomos confiança digital, transferência de dados seguras e confiáveis, e depois, como harmonizamos tudo isso para que não serem barreiras?

Evidentemente, temos desafios muito grandes de educação no Brasil. A educação no Brasil pode ser muito beneficiada. Podemos baixar o custo para educar melhor as pessoas, dando acesso digital, utilizando bem essas ferramentas. Por isso que tudo que falamos, dizemos que é necessário mudar o currículo, as pessoas têm de ser preparadas. Há o upskilling e o reskilling, que são os termos internacionais, que é assim, como pego o rapaz de manutenção e dou conhecimento adicional a ele para usar essas novas tecnologias? Nossos engenheiros precisam compreender o papel da tecnologia na resolução dos desafios da atividade deles. Seria o upskilling, como podemos melhorar. Há muita coisa que podemos fazer em torno disso, que vai efetivamente reduzir custo e ganhar competitividade.

Temos exemplos positivos de outros países que possam ser importados para a nossa realidade?

Fomos buscar melhores práticas dos países participantes e de que eles conheciam. Então, por exemplo, há boas práticas de Ruanda, da Costa Rica, e coisas que estão no Brasil que podem ser levadas para outros países. Meios de pagamento no Brasil. Todo o sistema financeiro brasileiro opera com um alcance muito grande e a um custo muito baixo relativamente. Isso pode ser apoiado em outras regiões. Trazemos também, pela experiência do grupo, outras experiências de outros países.

Um tema que ocorre é que há uma recomendação que surgiu no meio do trabalho sobre transferência de dados com confiança entre os países. É um “data free flow with trust”, um termo internacional (DFFT). Isso apareceu e acabou virando uma política de ação porque é um tema tão importante hoje, e isso reduz, por exemplo, o tratamento de uma doença, o desenvolvimento de um novo medicamento. Essas tecnologias são muito importantes, há condições em cada país, há relatos de cada região. Essas informações são necessárias para a aplicação de um medicamento, como podemos melhorar e progredir com eles.

Temos uma expectativa muito grande de que a IA vai ajudar, por exemplo, tanto no diagnóstico de doenças como no desenvolvimento de medicamentos. Então, a informação precisa funcionar bem para isso. É um mundo realmente novo, com muitas oportunidades de resolver grandes problemas a um custo relativamente baixo, e precisamos acessar isso rápido.

De tudo que falamos, inclusão digital é muito importante, antes da inteligência artificial, porque senão teremos um grupo de pessoas dentro e um grupo que está fora. Esse grupo que está dentro, com a inteligência artificial, vai avançar muito. E o grupo que está fora vai ficar muito distante. Então, promoveremos ainda mais desigualdade. Precisa ter um olhar claro sobre inclusão digital. Muito importante. E essa relação entre os países sobre transferência de dados seguros. Isso posto, com elementos de confiança em torno disso.

Quando falamos de inteligência artificial, nos preocupa muito quando discutimos riscos e não fazemos um uso adequado da tecnologia, ajustado ao risco. Isso é uma das nossas recomendações. Então, vou dar um bom exemplo: você imagina que possa usar IA para um brinquedo, para uma linha de produção que vai separar o produto bom do produto ruim, controle de qualidade. Há o uso da IA num avião, para operação de uma aeronave. São riscos diferentes. O risco de ter um produto ruim é ruim para o negócio, evidentemente, mas não é numa situação catastrófica. Um avião é uma situação catastrófica. No brinquedo da criança, se o brinquedo parar ou quebrar, ok. Você vai substituir, não vai colocar ninguém em risco. Então, o uso da IA deve ser feito com muito cuidado nas novas políticas para que estejam, de certa forma, alinhadas a uma abordagem associada ao risco. Isso para que possamos liberar o uso e expandir quanto antes, porque há muitas oportunidades que gerarão eficiência, competitividade e oportunidades para as pessoas. Não podemos perder esse trem. Precisamos correr. Ele é rápido agora, muito mais rápido.

Precisamos dar oportunidade às pessoas, gerar empregos de melhor qualidade, formar melhor essas pessoas. Isso está tudo na inclusão digital. Precisamos dar inclusão, precisamos dar formação para essas pessoas. Incluir não é só dar acesso à internet; incluir é formá-las. Então, o currículo tem de estar vinculado a isso.

Desde o início, falamos que o nosso problema está no mundo físico. O problema do mundo físico é dar saneamento, água potável, habitação segura. Criar condições de vida melhores, alimentos baratos. E toda essa tecnologia só faz sentido se colaborar. Não podemos perder essa conexão.

Isso não se afasta da atividade essencial dessas empresas. Estamos indicando aqui quais caminhos as políticas públicas têm que tomar, que entendemos que o alcance será maior. Então, naturalmente, os negócios vão se beneficiar disso.

Então, de alguma forma, após o evento em novembro do G-20, queremos dar continuidade na CNI, de como aplicamos tudo isso especificamente para os interesses do Brasil. E aqui estamos falando de diversos ministérios que estão engajados. Estamos muito próximos de vários ministérios que estão compondo o G-20. Então, por exemplo, fizemos um evento em Maceió porque havia um evento do G-20, e fizemos um de transformação digital do B-20 um dia antes, de modo que pudéssemos tê-los participando do nosso evento e com uma entrega formal das recomendações. Temos um debate muito longo sobre as recomendações em torno disso. Isso está muito bem engatado.

Estamos trabalhando juntos. As empresas estão muito disponíveis, muito dispostas a fazer. Existem algumas agendas sobre dados, propriedade de dados, que têm que ser resolvidas, mas não vejo aqui uma disputa internacional. Acredito que tivemos uma agenda de grande consenso. É uma coisa nova, com um potencial muito grande a ser explorado em todos esses países e regiões do mundo.

O que colocamos como recomendação é avançar no desenvolvimento do DFFT, que é o “data free flow”. Evidentemente, não tenho a resposta, mas esse é um tema interessante entre países asiáticos, africanos e na América do Norte. Como esse tema é enxergado por cada um. Mas existe uma compreensão de que, se não formos capazes, como recomendação de política, de avançar no desenvolvimento dessas tecnologias, de eliminar barreiras, dificultamos muito o desenvolvimento e a exploração das oportunidades que temos. Mas, sem dúvida nenhuma, é um tema muito delicado. Tem camadas.

É que vemos, sei lá, até redes sociais, ou operação de fabricantes de telefonia. China, Estados Unidos, essa briga, questão com Rússia no meio…

É que vemos disputa geopolítica sobre operação de empresas de redes sociais em outros países, disputa sobre operação ou não de fabricantes de telefonia. China, EUA… Fico surpresa em ouvir que não houve grande divergência.

Porque estamos no setor privado apenas. Isso não representa, sim, o contexto global. Mas esse foi o tema com mais discussões, sem dúvidas. Tivemos 15 reuniões em torno desse tema, sem dúvida é relevante. Por isso, a recomendação é avançar no desenvolvimento deste mecanismo. É necessário prestar atenção, porque isso está limitando nossa capacidade de crescer. Isso está restringindo o crescimento dos países e não está transferindo informações.

Na Índia, há toda uma economia voltada à prestação de serviços para outras regiões, com pessoas muito bem formadas tecnicamente, com acesso digital, que prestam serviços. Não se fala apenas de call centers, mas muito além disso. Se pegar manutenção de aeronaves no mundo, os dados são transferidos para um centro na Índia, que processa e define parâmetros de manutenção dessas aeronaves. Tem engenheiros indianos que trabalham para companhias aéreas do mundo inteiro, criando um cluster, uma nova economia naquele país.

Provavelmente porque, na Índia, houve uma base de engenheiros muito forte, uma base matemática robusta. Retornamos à questão da boa formação em educação e como criar essa conexão. Vemos muitos casos hoje de empresas de tecnologia que recrutam pessoas no Brasil, trabalhando de casa, para empresas americanas, europeias, seja o que for. Existem oportunidades aqui que precisam avançar. Há conflitos e discussões, mas existe uma camada abaixo muito grande, com muito volume e muita oportunidade, que precisa ser resolvida. Por isso, falamos: “Olhem (governos) para isso, porque facilitará muito a resolução e o desenvolvimento dessas tecnologias”.

De uma maneira mais ampla, e não só falando de digitalização, em qual posição o Brasil chega para esse G-20? E o que você espera do Brasil?

O Brasil focou em necessidades básicas da sociedade: eliminação de desigualdades, redução de pobreza, eliminação da fome, transição energética. Esses são os grandes problemas que precisamos enfrentar no mundo hoje. Começamos muito bem, apontando nessa direção. Vejo um sistema muito organizado de recomendações de trabalho. Isso nos dará muita força e credibilidade nas recomendações.

O Brasil escolheu assuntos nos quais temos bons programas, temos bons programas de redução de pobreza, eliminação da fome e transição energética. Todos estão usando diferentes frentes para atacar essas questões. É muito difícil, porque há múltiplos interesses ocorrendo. Vejo um mundo um pouco mais dividido do que antes. Vemos tantas disputas, mas espero que haja união em torno dessas metas que o Brasil colocou. Estamos atacando problemas que são reais. As pautas não são controversas, são necessidades essenciais da sociedade. O Brasil está buscando unir os países em torno dessas pautas essenciais. No fundo, são pautas importantes, seculares de transformação da sociedade. O mundo vai crescer, a população vai aumentar. Precisamos absorver tudo isso e ter preocupação com energia e condições mínimas. Os temas estão bem escolhidos. Estamos conseguindo construir um bom G-20 para o Brasil. Essa é nossa principal missão.


Fonte: Estadão

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