Uso de depósitos bancários para cumprir meta fiscal aprovado em desoneração alerta investidores
Folha ouve especialistas para avaliar impacto da mudança aprovada à revelia do BC
Adriana Fernandes Victoria Azevedo
Brasília
Após a votação do projeto de desoneração da folha de pagamentos, investidores do mercado financeiro passaram a quinta-feira (12) em alerta e busca de informações sobre o impacto da autorização para que o dinheiro esquecido em contas bancárias a ser repassado aos cofres do governo possa ser computado como receita para fins de cumprimento da meta fiscal, à revelia do cálculo feito pelo Banco Central.
Um dos principais pontos levantados pelos especialistas foi a avaliação de que a medida abre, na prática, uma exceção na regra, ao permitir uma “redução” do esforço fiscal para o atingimento da meta das contas do governo no valor desses depósitos esquecidos. O SVR (Sistema de Valores a Receber), do BC, indica a existência de R$ 8,5 bilhões esquecidos.
A autorização foi incluída de última hora no projeto da desoneração da folha de 17 setores e municípios durante a votação final do texto, que se estendeu até 2h25 desta quinta. O registro desses depósitos como receita no cômputo da meta fiscal vai dar uma ajuda extra ao governo para cumprir o alvo fixado de déficit zero.
A votação atrasou porque os negociadores do governo entraram em campo para garantir esse dispositivo de segurança, após o BC ter encaminhado às lideranças da Câmara uma nota técnica pedindo a rejeição do trecho que trata do resgate do dinheiro esquecido nas contas bancárias.
No documento, o BC alertou que, da forma como estava escrito o projeto, ele seria obrigado a registrar a incorporação desse dinheiro como receita no cálculo do resultado das contas do governo federal.
Procedimento que, segundo o entendimento do BC, estaria em desacordo com a metodologia das estatísticas fiscais. Ao menos num ponto o órgão conseguiu prevalecer o seu entendimento: a emenda de redação aprovada dá segurança para que a autoridade monetária não seja obrigada a registrar os depósitos como receita.
A Folha ouviu especialistas em contas públicas para avaliar a medida.
“Muita gente preocupada. Foi prioridade no wake up call para os investidores”, conta o economista-chefe da ARX Investimentos, Gabriel Barros. Para ele, o governo repete o mesmo erro do passado, quando o excesso de deduções da meta de resultado primário desancorou o mercado e turvou a real leitura da situação fiscal.
O coordenador do CPFO (Centro de Política Fiscal e Orçamento Público) do FGV Ibre , Manoel Pires, pondera que as estatísticas fiscais têm papel de representar a situação financeira do governo. “Quando ela é alterada de forma artificial perde-se essa informação, perde-se credibilidade”, afirma Pires.
O economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, tem uma posição diferente. “Não tem nada de contabilidade criativa. Ao contrário”, diz. “O ideal é que o BC incorpore o entendimento legal. A receita de depósitos é primária, não tem contrapartida financeira. É um erro do manual do BC que tem de ser corrigido a meu ver”, afirma.
Ex-secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, por outro lado, alerta para um problema: o fato de que a definição de que o BC é o responsável em dizer se cumpriu ou não a meta fiscal está na lei do arcabouço fiscal. Bittencourt, que é Head de Macroeconomia da ASA, diz que a emenda mostrou ao final que a medida não era para completar o valor da compensação à renúncia da desoneração, mas para cumprir a meta.
Os defensores da medida reforçam como positivo que o BC vai computar a receita dos depósitos para reduzir a dívida pública.
O pesquisador do Insper, Marcos Mendes, diz que a medida é ruim para a credibilidade e transparência. “O que a emenda está dizendo é o seguinte: o BC pode contabilizar como ele quiser, o Tesouro pode contabilizar como ele quiser, mas para fins de meta conta o que o Tesouro escolher. E obviamente ele vai escolher botar como receita primária. Isso aí efetivamente é a mesma coisa que autorizar a redução da meta em R$ 8,5 bilhões”, critica Mendes.
Ele também vê problemas no mérito da medida. “Pegar dinheiro privado que está na conta das pessoas e rapidamente mandar para o Tesouro, ainda que tenha uma cláusula de possível devolução para quem pedir em cinco anos, é complicado”, diz.
A Folha procurou os ministérios da Fazenda, do Planejamento e Orçamento e o BC para falar sobre o impacto da medida na verificação da meta fiscal. O Planejamento disse que não iria comentar; Fazenda e BC não responderam ao pedido de informações.
Técnicos do Banco Central, ouvidos pela Folha, porém, avaliam que a autoridade monetária não é responsável pela validação da meta fiscal.
Técnicos legislativos afirmam à reportagem que o texto final ficou confuso, diante da rapidez com que a matéria foi levada ao plenário. Além disso, parlamentares afirmam que negociações políticas da Câmara também interferiram no processo de análise da proposta.
A votação do projeto se estendeu na madrugada por conta das discussões da emenda dos depósitos e sob a pressão de ser analisada em plenário ainda na quarta (11), prazo final dado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para a aprovação do texto que sela o acordo entre o Executivo e o Senado. Se o prazo não fosse cumprido, a desoneração em vigor deixaria de valer.
A Câmara concluiu nesta quinta (12) a votação do projeto de lei que mantém a desoneração em 2024 para empresas de 17 setores da economia e de prefeituras com até 156 mil habitantes, após a aprovação do texto-base na noite de (11). A proposta segue, agora, para sanção do presidente da República.
Após a aprovação do texto-base, a AGU (Advocacia-Geral da União) pediu ao ministro Cristiano Zanin prazo adicional de três dias úteis para que o trâmite do projeto fosse finalizado, e a matéria, sancionada. A medida foi atendida. O Ministério da Fazenda calcula uma renúncia de R$ 55 bilhões a ser compensada até o fim de 2027. A proposta prevê uma série de compensações diante da renúncia fiscal com a desoneração.
Fonte: Folha de São Paulo