Trava de 26,5% aprovada na Câmara é conta que não fecha, diz relator da tributária no Senado
Eduardo Braga aponta inconsistências em texto aprovado por deputados e critica inclusão da carne na cesta básica: ‘Foi o lobby do agro’
Adriana Fernandes Idiana Tomazelli
Brasília
O relator do projeto de regulamentação da reforma tributária no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), afirma que a trava aprovada pela Câmara para garantir que a alíquota dos novos tributos não ultrapasse os 26,5% representa uma conta que não fecha.
“Essa trava é esquisita. O cara escreve de A a Z e depois diz ‘esse A a Z tem que caber dentro desses 26,5%’. A conta não fecha”, afirma Braga à Folha.
O relator diz que pretende implementar o modelo da trava aprovada na emenda constitucional, que prevê uma fórmula de cálculo para manter a carga tributária estável em vez de fixar um percentual definido
O relator diz que encontrou muitas inconsistências nas mudanças aprovadas pelos deputados e sinalizou que pode propor tratamento diferenciado para o setor de saneamento, além de mudanças nos produtos taxados pelo Imposto Seletivo, o chamado “imposto do pecado”. Entre eles, alimentos ultraprocessados, bebidas açucaradas, armas, minérios e carros.
Num tom duro, Braga critica o lobby da bancada do agronegócio, que conseguiu mais vantagens no projeto de regulamentação.
“O que você chama de agro, eu chamo de lobby. Foi o lobby do agro. Não é o agro bonzinho, o agro da televisão, que faz aquela propaganda bonita”, diz. Para ele, o agro é muito poderoso, mas pode não estar prestando um serviço ao povo brasileiro. O relator afirma ainda que, no Senado, o projeto não será votado na “calada da noite”.
O presidente Rodrigo Pacheco (Senado) disse que o projeto só será votado após as eleições municipais. Havia um açodamento na tramitação?
Não por parte dos senadores. Independentemente de qualquer outra questão, o presidente do Senado já assumiu um compromisso com os senadores, as lideranças e com a opinião pública de que a tramitação no Senado garantirá o amplo debate.
Seria ruim a votação no meio da eleição?
É uma questão de legitimidade. Nós não vamos votar uma matéria que altera o cotidiano dos brasileiros, das empresas, do setor produtivo, dos estados, dos municípios e da União, na calada da noite. Nós o faremos com um plenário cheio, com quórum alto e debate.
O sr. tem alguma crítica em relação à votação na Câmara?
Não estou falando nada sobre a Câmara. O que eu estou dizendo é que o Senado vai fazer o processo nos mesmos moldes que fez em relação à emenda constitucional.
A reforma será votada até o final do ano? Não pode acabar ficando para o ano que vem?
Nosso desejo é que sim, mas todos sabemos que a reforma tem longa transição. Se por acaso ela escorregar para ser votada no mês de março do ano que vem, isso não trará prejuízo à reforma.
O que trará prejuízo é se nós aprovarmos a toque de caixa, no afogadilho, sem transparência, sem amplo debate e ampla participação da sociedade brasileira, do setor produtivo. É nos detalhes da regulamentação que moram os perigos.
A Câmara aprovou a urgência do projeto. Ela vai ser retirada?
Não sei se ela vai ser retirada. Eu pedi que retirassem. É impossível o Senado debater, discutir, aprovar, construir um texto que alcance maioria no plenário em pleno processo eleitoral.
O processo ainda não está tramitando. [A partir da leitura do projeto] Se passar os 45 dias e não for votado, tranca a pauta do Senado.
O Senado definiu o saneamento como um setor importante na tramitação da PEC, mas ele ficou sem tratamento diferenciado. Faz sentido deixá-lo fora das exceções, enquanto planos de saúde de pets e flores conseguiram alíquota mais baixa?
O Brasil tem algumas dívidas sociais profundas, uma delas é o saneamento. Se nós ainda temos dengue, chikungunya, doenças endêmicas, boa parte é pela falta do saneamento. Investir no saneamento é importantíssimo para reduzir os gastos com doenças.
O Senado está atento a isso. Vamos olhar com muito zelo. Não é justo que uma questão tão relevante seja tratada como nota de rodapé na reforma.
A alíquota média de 26,5% projetada já se desfez com novas exceções. A estimativa já está bem acima dos 27%, que é a maior alíquota do mundo. O sr. está disposto a rever os favorecimentos feitos pela Câmara?
O relatório não é uma obra unilateral. É construído a partir das correlações de forças democráticas do Congresso. O meu intuito é que tenha trava [para não ter aumento da carga tributária]. Quem trouxe a trava para a neutralidade foi o Senado [na votação da PEC] e da forma correta. Essa trava [da Câmara] é esquisita. O cara escreve de A a Z e depois diz ‘esse A a Z tem que caber dentro desses 26,5%’. A conta não fecha.
Como melhorar a trava que a Câmara aprovou?
Quero fazer valer o que a emenda constitucional estabeleceu e o que promulgamos. A trava aprovada pela Câmara não faz isso. A gente tem que construir isso com maioria de apoiadores. Na política, eu acho que é possível.
Quais mudanças o sr. pensa em fazer no Imposto Seletivo de carros, especialmente os elétricos?
Não posso tratar desiguais de forma igual. Como é que eu posso tratar um carro que emite 100% de gases de efeito de estufa igual a um que tem emissão zero de carbono? O híbrido emite muito menos do que o de combustão plena. Tem que ter uma escada de gradação [da tributação]. Vou ser criticado já já por isso, mas como posso taxar bebidas alcoólicas com volumes de álcool diferentes de forma igual?
Os caminhões escaparam do Imposto Seletivo, mas também são movidos a combustível fóssil. Não pareceu que tinha alguma intenção de prejudicar os carros elétricos?
Você está querendo que eu diga que houve lobby. Eu não sei se houve lobby. Não estava lá. O que eu posso dizer é que a lógica é ter um critério, que é pelo mal que causa ao meio ambiente. E não fazermos em função de interesses comerciais ou econômicos, seja de A, de B, ou de C, ou de D.
Os produtos ultraprocessados ficaram fora do Imposto Seletivo. Como avalia esse ponto?
Acho estranho deixar os ultraprocessados de fora e colocar as bebidas açucaradas, independentemente do teor de açúcar. Há uma falta de lógica. Você tem uma bebida que tem um teor, sei lá, de 20% de açúcar e tem uma outra bebida que tem zero de açúcar. Aí taxa as duas igual. E os ultraprocessados, que fazem um mal terrível, ignora?
Não posso dizer que vou consertar. O que posso dizer é que isso me incomoda, porque não vejo lógica. Existem muitas inconsistências do ponto de vista lógico.
Como o sr. viu o debate da carne na cesta básica, polarizado entre bolsonaristas e lulistas?
Eu defendia uma cesta básica de 30 a 50 itens com alíquota zero e uma cesta estendida com os demais itens, com cashback [devolução de parte do imposto pago]. Seria mais justo do ponto de vista tributário.
Eu tentei construir um acordo, até construí, porque nós aprovamos aqui no Senado, e lá… Volto a dizer, eu não comento sobre Câmara e tudo mais, fizeram um absurdo. Acho que essa é uma matéria vencida do ponto de vista político. Retomar essa discussão, eu não vejo muito espaço. Mas é uma pena, porque o povo não come filé mignon.
Nesse debate venceu o populismo?
O que vocês chamam de populismo teve outro nome. Lobby não é populismo. Lobby é lobby. Lobby é quando um determinado agente econômico, por interesses econômicos, move uma determinada ação.
O sr. está falando da carne, especificamente.
Estou falando em vários desses assuntos, inclusive carne.
O agronegócio já tinha sido muito favorecido na PEC. Aí o setor jogou mais pesado ainda, inclusive horas antes da votação da regulamentação.
O que você chama de agro, eu chamo de lobby. Foi o lobby do agro. Não é o agro bonzinho, o agro da televisão, que faz aquela propaganda bonita, que agora bota até LGBTQIA+ para dizer que o cara é do agro e tal. No agro eu não vejo muito essa coisa, mas enfim, até esse verniz estão colocando. Não é esse. O agro que atua é o agro da frente parlamentar, que é um instrumento de lobby, de pressão, de apresentar suas propostas etc.
Esse agro ganhou coisas, foi favorecido aqui no Senado também na reta final da PEC.
No Senado não. No Senado ele arrancou zero. Me aponte o que foi acrescentado para o agro aqui. Se você encontrar, eu vou no Rodrigo Pacheco e digo ‘amigo, estou fora’.
O sr. acha que tem que tirar alguma coisa?
O agro é muito poderoso, muito competente, mas eu não sei se ele está prestando um serviço ao povo brasileiro ou aos interesses econômicos do agro.
Em que sentido o sr. diz isso?
Leia como você quiser.
Na PEC, o sr. propôs alíquota máxima de 1% no Imposto Seletivo sobre minérios e petróleo, mas a Câmara fixou um subteto de 0,25%. Como viu essa mudança?
Acho muito estranho. De novo, é uma incoerência. Como é que há um mandamento constitucional que estabelece 1% e que diz que a lei complementar iria disciplinar a matéria?O sr. pretende incluir a taxação das armas pelo Imposto Seletivo?
Vou tentar. Não dá para manter armas com uma carga tributária menor do que a que está hoje.
Fonte: Folha de São Paulo