Discussão de nova regra para delações tumultua ferramenta marcada por confusões desde o início

Uso apressado na Lava Jato gerou situações controversas e contribuiu para desgaste da operação

Felipe Bächtold

São Paulo

A eventual aprovação no Congresso de proposta que muda as regras de delação premiada coroaria uma trajetória acidentada dos acordos de colaboração no país.

A Operação Lava Jato notabilizou esse tipo de instrumento jurídico no Brasil, mas, por causa do uso atabalhoado dele, sofreu intensos questionamentos.

As delações foram regulamentadas em 2013, na esteira dos protestos de junho daquele ano, em lei assinada pela então presidente Dilma Rousseff. Meses depois, foi deflagrada a primeira fase da Lava Jato, operação na qual os acordos de colaboração se tornariam um pilar das investigações.

Se as regras hoje em debate no Congresso estivessem em vigor naquela época, depoimentos de delatores como o doleiro Alberto Youssef e o ex-executivo da Petrobras Paulo Roberto Costa jamais teriam vindo a público, já que ambos estavam presos quando aceitaram falar.

Os dois revelaram detalhes sobre uma trama de corrupção sistêmica em diversas esferas públicas, o que abriu caminho para o caso tomar a proporção que tomou.

Com o avanço das investigações, mais e mais envolvidos aceitavam firmar novas colaborações, provocando situações controversas com alguma frequência. A começar pelo surgimento da figura do “advogado especialista em delação”, que acumulava clientes por vezes com interesses conflitantes e que se tornou comum no auge das investigações em Curitiba.

Também houve, à época, episódios em que contradições entre delatores foram convenientemente deixadas de lado, reclamações por suposto favorecimento excessivo a criminosos confessos e até delator perdendo benefício por mentiras.

Como o instrumento era recém-implementado, não havia respostas claras sobre o que fazer, por exemplo, no caso de delator que omitia crimes nos quais estava envolvido nem quais eram os critérios para definir o tamanho dos benefícios concedidos.

E existia, simultaneamente, a pressa das autoridades da operação em fechar acordos com um número cada vez maior de envolvidos, na ânsia de chegar cada vez mais longe nas apurações. Foi um ritmo intenso de negociações, com mais de 200 acordos assinados só no Paraná.

Naqueles tempos em que a Lava Jato ostentava amplo apoio popular, prisões sem prazo determinado eram quase regra, habeas corpus frequentemente eram rejeitados nos tribunais superiores e a assinatura de um acordo de colaboração parecia a única alternativa viável para um suspeito deixar a cadeia.

Foram se acumulando situações inusitadas. No caso dos delatores da empreiteira Odebrecht, na apelidada “delação do fim do mundo”, criou-se um estranho modelo em que um colaborador, mesmo que nunca tivesse sido formalmente investigado e muito menos condenado, pactuava com o Ministério Público por quanto tempo ficaria detido. Essa dosimetria, em situações convencionais, só seria definida após a sentença de um juiz, ao fim de um processo.

Quase na mesma época, em 2017, uma outra polêmica atingiu o modelo de delações premiadas. Em um caso que não tramitou no Paraná, os irmãos donos do frigorífico JBS, Joesley e Wesley Batista, obtiveram o perdão judicial, mediante pagamento de multa, após confessarem um amplo esquema de corrupção envolvendo o conglomerado empresarial.

Os relatos de Joesley quase custaram o cargo do então presidente Michel Temer, que foi um dos que questionaram o que via como premiação exagerada para um criminoso confesso.

Para piorar o cenário, veio à tona que um procurador lotado na Procuradoria-Geral da República auxiliou os empresários do frigorífico no acordo, já em meio a seu pedido de exoneração do Ministério Público. O perdão a Joesley foi suspenso, ele chegou a ficar preso e o acordo dele acabou repactuado anos depois.

O tempo passou, a Lava Jato foi paulatinamente esvaziada e o risco de ficar longas temporadas na cadeia se tornou cada vez mais distante para acusados de crimes do colarinho-branco, principalmente depois de o STF (Supremo Tribunal Federal) desautorizar a prisão de réus condenados em segunda instância, em 2019.

Surgiu uma nova circunstância insólita: os delatores se tornaram praticamente os únicos que cumpriram algum tipo de punição na Lava Jato, já que os presos que não fecharam acordo conseguiram aos poucos sair da cadeia e aguardar em liberdade o esgotamento de seus recursos.

Enquanto os ex-presos foram anulando seus processos, com base em alegadas irregularidades do início da Lava Jato, os delatores amargam —alguns até hoje— limitações. O marqueteiro João Santana, por exemplo, ainda tem horas de serviços comunitários a cumprir, enquanto ex-presos que não delataram, como o ex-deputado Eduardo Cunha, não cumprem hoje em dia qualquer sanção.

Em 2019, com o desgaste da Lava Jato, o Congresso entrou em campo para modificar e ampliar a regulação dos acordos de colaboração premiada. O pacote anticrime, originalmente proposto pelo hoje senador Sergio Moro e depois bastante alterado no Congresso, foi aprovado em 2019 estabelecendo uma série de mudanças nos acordos de delação premiada.

Entre as alterações, estava a limitação a penas não previstas diretamente na legislação, como regimes mistos de prisão domiciliar. Também ficava estabelecida maior participação do juiz na consumação do compromisso.

Críticos diziam que essas alterações já tornaram os acordos pouco interessantes para os envolvidos e afetava um dos principais trunfos da Lava Jato. Se o propósito era esse ou não, o fato é que rarearam os acordos de delação firmados desde aquela época no âmbito da operação nascida em Curitiba.

Desde o ano passado, porém, o tema ressurgiu no debate político nacional por causa da assinatura dos acordos do ex-PM Ronnie Lessa, que confessou ter matado a vereadora Marielle Franco em 2018, e do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro. Foi a deixa para o fantasma das delações voltar ao meio político –agora à direita– e fazer ressurgir a proposta de proibição de acordos com investigados presos, que já tinha sido debatida no auge do impacto da operação iniciada em Curitiba. Uma mudança que certamente tumultuaria ainda mais o uso no Brasil de uma alternativa de reconhecida importância para o combate a organizações criminosas.


Fonte: Folha de São Paulo

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