Despesas obrigatórias vão anular espaço para gastos ou ampliar déficit

Gasto fixo limitará programas até 2026, aumentando risco de descumprimento de metas fiscais

Fernando Canzian

São Paulo

O aumento crescente das despesas obrigatórias pode deixar o governo Lula com pouca margem para tocar a máquina pública e estrangular a capacidade de investimento.

Para gastar mais, o risco é que relaxe outra vez as metas fiscais que aprovou há menos de nove meses. Isso aumentaria o déficit e a dívida pública em relação ao PIB —principal indicador de solvência do país

Esse cenário já é precificado pelo mercado, que exige juros crescentes do governo para financiar seus rombos. Na semana passada, a taxa para títulos públicos de dez anos chegou a 11,8% ao ano —patamar que inibe empresas de tomar empréstimos para investir. Mesmo as que têm capital próprio tendem a aplicá-lo em papéis do governo em vez de ampliar seus negócios.

As taxas elevadas e a falta de investimentos limitam o crescimento do Produto Interno Bruto e agravam o endividamento —tanto pelos juros que são incorporados à dívida quanto pelo fato de ela ser calculada como proporção do PIB (que cresce menos).

Os juros sobem porque o governo tem déficits e não gera superávits primários, a economia que deveria fazer para abater a dívida. Em dez anos, a receita em impostos cresceu 0,52 ponto percentual como proporção do PIB, mas a despesa subiu 2,24 pontos —produzindo os déficits.

Isso fez a dívida pública bruta saltar quase 23 pontos em uma década, chegando a 75,7% do PIB em março. É uma das maiores entre os emergentes e, quanto mais alta, mais juros são exigidos para financiá-la. No ano passado, foram pagos R$ 718,3 bilhões em juros —quatro vezes o orçamento do Bolsa Família.

O Brasil também tem um dos maiores patamares de despesas obrigatórias do mundo, como benefícios previdenciários, salários de servidores e gastos em saúde e educação. De tudo o que entra como receita de impostos, mais de 90% vão para essas despesas. Nos EUA, o gasto obrigatório equivale a 62,5% da receita. Na Coreia do Sul, que se desenvolveu rapidamente nas últimas décadas, 53%.

No Brasil, sobram menos de 10% para custear a máquina com despesas chamadas discricionárias, em que há liberdade de escolha para o gasto. Seja no básico (água, luz), seja nos investimentos (Programa de Aceleração do Crescimento, Minha Casa Minha Vida etc.). É com esses gastos que o governo chama a atenção da população com políticas voltadas a ela.

São essas despesas que ficarão comprimidas até o fim do mandato de Lula, quando o presidente estiver preparando sua reeleição ou a candidatura de uma alternativa no PT. Foi o próprio governo que contratou, em grande parte, o cenário de aperto que terá pela frente. Por dois motivos.

O primeiro é que a política de aumento real (acima da inflação) para o salário mínimo de Lula impacta 60% dos benefícios previdenciários. Cada aumento de R$ 1 no salário mínimo acarreta gasto adicional previdenciário (obrigatório) de R$ 350 milhões.

O segundo ponto é que a PEC da Transição (EC 126/22), que determinou o fim do teto de gastos e a criação do novo arcabouço fiscal —a regra para tentar conter a dívida pública—, estabeleceu a reindexação da despesa mínima em saúde, em educação e das emendas parlamentares obrigatórias à Receita Corrente Líquida (RCL), não mais à inflação.

Segundo cálculo do especialista em contas públicas Marcos Mendes, do Insper, essas mudanças patrocinadas pelo governo custarão R$ 95 bilhões a mais, em 2024, em comparação a um cenário em que as regras não tivessem sido alteradas.

Outras vinculações mais antigas —no fundo que o governo destina ao Distrito Federal, vigente desde 2003, e o aumento na participação obrigatória da União no Fundeb (Fundo da Educação Básica), efetivada em 2020— deixarão a despesa R$ 51 bilhões acima do que ela estaria se essas regras não existissem. Embora não tenham sido motivadas por Lula, elas geram gastos que ele terá de pagar.

No total, são R$ 132 bilhões a mais orçados para 2024. Isso significa que, se as vinculações não existissem (e a maior parte das despesas fosse corrigida pela inflação), o déficit que o governo estima em R$ 27,5 bilhões neste ano (contando R$ 13 bilhões de ajuda ao Rio Grande do Sul) se transformaria em superávit de R$ 105 bilhões (0,9% do PIB).

Há alguns dias, os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) aventaram a possibilidade de desvincular benefícios do INSS e BPC da correção pelo salário mínimo e alterar as regras em saúde e educação para baixar as despesas. Mas poucos veem disposição em Lula de mexer nessas questões.

Nesse contexto, o arcabouço fiscal de Lula tem baixa credibilidade. Para 2024, tem meta central de déficit zero. Mas o governo acaba de elevar a estimativa de rombo para 0,13% do PIB, ou R$ 14,5 bilhões (sem contar a ajuda ao Rio Grande do Sul). Isso ainda está dentro do intervalo de tolerância da regra, de 0,25 ponto percentual para mais ou menos, o que permitiria ao governo terminar 2024 com déficit de R$ 28 bilhões. Mas estimativas independentes projetam rombo de R$ 80 bilhões.

Para 2025, em vez da meta original de superávit de 0,5% do PIB, o governo a rebaixou para zero. E estipulou para o último ano de Lula, 2026, superávit de 0,25% (em vez do 1% de sua própria meta original). Analistas consultados no boletim Focus do Banco Central, no entanto, projetam déficits em todo o governo de Lula.

O arcabouço depende da elevação de impostos para proporcionar aumentos anuais reais (acima da inflação) entre 0,6% e 2,5% nos gastos. Embora a arrecadação federal tenha crescido 8,3% no primeiro quadrimestre do ano, estima-se que a alta possa ter alcançado um teto. Mesmo assim, se a receita sobe, parte dos gastos a ela indexados (como saúde e educação) cresce junto —comprimindo as demais despesas.

Mendes, que é colunista da Folha, afirma que, com o passar do tempo, o custo fiscal das vinculações obrigatórias crescerá exponencialmente, em especial nos casos da Previdência e assistência (como o BPC), com o acúmulo de ganhos reais sucessivos do salário mínimo.

Ele pondera que não se pede um corte radical de gastos, nem o fim da correção das despesas pela inflação. “O necessário é fazer com que a despesa cresça mais devagar, em ritmo menor que o do PIB. Que não acelere acima da inflação.” Assim, o valor das despesas como proporção ao tamanho da economia iria diminuindo ao longo de vários anos.

Para o economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do Ibre-FGV, o movimento de “corrosão” das despesas discricionárias (livres para custeio e investimentos) no governo Lula 3 deve começar a ganhar força em 2025 e 2026, o que coincidirá com o calendário da eleição presidencial, daqui a dois anos.

“Pergunte se o PT e Gleisi [Hoffmann, presidente do partido] vão encarar isso com simpatia. Não vão. Pode ter certeza que o PT vai fazer campanha contra o arcabouço fiscal. Na minha avaliação, o arcabouço trinca, mas fica. Porque não vai dar para mudar no último ano [2026]. Mas vamos ter uma saraivada de críticas”, afirma.

Nesse processo, as regras do arcabouço podem acabar sendo outra vez relaxadas para que o governo tenha mais dinheiro para investir em programas no período pré-eleitoral. “Mas isso vai desaguar em uma necessidade de revisão das regras em 2027. Isso é tão certo como dois e dois são quatro”, diz Giambiagi.

Daniel Couri, consultor do Senado e ex-diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) que trabalhou no atual governo como secretário-adjunto de Orçamento do Ministério do Planejamento, tem visão parecida.

“Os sinais concretos que o governo dá são no sentido de que não vai conter o crescimento da despesa. Mesmo tendo criado o novo arcabouço, já colocamos na conta que a despesa vai estourar. Ou seja, na hora em que a pressão for muito grande, o elo mais fraco entre aumento da despesa e a regra fiscal vai ser a regra fiscal. Como tem sido ao longo da nossa história”, afirma.

Para Jeferson Bittencourt, secretário do Tesouro em 2021 (governo Jair Bolsonaro), não é provável que o governo Lula viva uma situação de “shutdown” (paralisação por falta de dinheiro) se tiver despesas discricionárias (livres) ao redor de 1,5% do PIB. Mas, com o avanço dos gastos obrigatórios, isso não está garantido. Há dez anos, as despesas discricionárias equivaliam a 2,5% do PIB. Em 2023, foram de 1,7%.

“O que vai determinar se o governo aceita ou não esse nível de despesa discricionária é sua inclinação política de não concordar em gastar menos”, diz Bittencourt, hoje na ASA Investments.

“O coração do arcabouço é o limite de aumento da despesa [2,5% ao ano mais inflação]. A equipe econômica deve brigar para não alterar isso. Porque sabe que mudar o limite de despesa é ferir de morte o arcabouço.”

Segundo João Pedro Leme, da Tendências Consultoria, não existe no governo coesão em torno de uma proposta de controle das contas públicas pelo lado da despesa. Nem no Congresso, em caso de encaminhamento de medida nessa direção. “O cenário fiscal é desafiador. E catastrófico se decisões erradas forem tomadas. Alguma mudança mais estrutural na forma como o governo se relaciona com o Legislativo ou consigo mesmo precisa ser feita para que haja um semblante de esperança de que essa situação será equacionada. Antes de levar a um quadro de medidas mais drásticas, com grande custo social para população”, afirma.


Fonte: Folha de São Paulo

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