Guerra da tributária: setores atingidos falam em inflação, preconceito e imposto ‘jabuticaba’
Regulamentação dos novos tributos sobre consumo chega à Câmara dos Deputados envolta em polêmicas e divergências, que vão desde o ‘imposto do pecado’ até a composição da cesta básica
BRASÍLIA – A guerra dareforma tributáriavai entrar em uma nova etapa a partir da semana que vem: as duras negociações em torno das 360 páginas de regulamentação enviadas pelo Ministério da Fazenda ao Congresso Nacional. As divergências, que mobilizam setores, corporações e tributaristas, vão desde o escopo do Imposto Seletivo, o chamado imposto do “pecado”, até a composição da cesta básica, passando, ainda, pelos planos de saúde.
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O varejo supermercadista, por exemplo, fala em “preconceito” na escolha dos 15 itens que vão compor a cesta de alimentos com Imposto sobre Valor Agregado (IVA) zero, deixando as carnes de fora. “Estou muito preocupado com esse viés de separação de alimentação de uns (os mais ricos) e de outros (os mais pobres)”, afirma João Galassi, presidente da Associação Brasileira dos Supermercados (Abras), que já negocia ativamente uma ampliação dessa lista.
Já os setores de minério e petróleo argumentam que haverá impactos inflacionários e na balança comercial decorrentes da sobretaxa do Seletivo na extração, que também valerá para a exportação dessas matérias-primas. O novo “imposto do pecado”, inclusive, já ganhou apelido, devido à sua abrangência, considerada peculiar. “É o seletivo ‘jabuticaba’, um tributo que só tem no Brasil”, diz Luiz Bichara, sócio do Bichara Advogados.
A gente entende, então, que a orientação do governo é desincentivar, já que o objetivo do Seletivo é desincentivar condutas reprováveis, a extração de minério de ferro e petróleo no País. Só que, por acaso, esses são, respectivamente, o primeiro e terceiro itens na balança comercial brasileira”, pondera Bichara.
Ao Estadão, o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy, afirmou não se tratar de uma opção do governo,e sim do Congresso Nacional, que previu essa cobrança na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma. “Nós apenas incorporamos o que o Congresso já tinha previsto”, afirmou.
Confira abaixo cinco pontos de embate que devem movimentar a Câmara dos Deputados nas próximas semanas.
“Colocar o imposto sobre o carro que vai emitir muito CO2 está bem, existe essa discussão sobre carros que consomem muita gasolina, que poderiam ser menores ou mais econômicos. Cigarro e bebida também. Agora, sobre um produto que é insumo e que alimenta toda a estrutura industrial, me parece uma decisão equivocada e que só vai gerar inflação e custo para a população ao final”, afirma o presidente do Instituto Brasileiro do Petróleo e Gás (IBP), Roberto Ardenghy.
Isso porque, segundo ele, as empresas vão transferir o custo do novo imposto para a próxima etapa da cadeia produtiva até chegar ao consumidor.
Essa taxação foi uma inovação proposta pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM), que relatou a reforma tributária no Senado no ano passado. Pelo texto inserido na Constituição, a extração de recursos naturais não renováveis poderá ser tributada em até 1%.
A regulamentação, apresentada na última quarta-feira, 24, pela equipe econômica, listou três produtos específicos: petróleo, gás natural e minério de ferro. Além disso, incluiu cigarros, bebidas, automóveis, aeronaves e embarcações na lista de alvos do imposto do pecado. As alíquotas serão definidas em projeto de lei posterior.
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Ardenghy afirma que as equipes técnicas do IBP ainda analisam o texto, mas há suspeita de que o biometano, gás produzido a partir da decomposição de biomassa principalmente da cana-de-açúcar, também poderia estar suscetível à tributação, dada a redação da regulamentação.
“Fizemos uma pesquisa em outros países e não encontramos Imposto Seletivo sobre petróleo em país nenhum. A Europa tributa carros e até casacos de pele, no caso da França, com o intuito de desestimular esse tipo de prática; ou itens de luxo, mas é sempre no consumidor final, nunca no produtor”, afirma Ardenghy.
O executivo observa, ainda, que a taxação irá incidir sobre o produto exportado, ferindo o princípio propagado pela equipe de Fernando Haddad, de que as vendas ao exterior seriam poupadas da nova tributação. “Nos primeiros três meses do ano, o petróleo foi um dos produtos mais exportados pelo Brasil, passou o complexo soja. No ano passado, gerou um superávit de US$ 23 bilhões”, disse ele.
Segundo estimativas do IBP, a tributação, se levada a 1%, poderá gerar uma arrecadação de R$ 7 bilhões ao ano para o governo. “A impressão que ficou é que, como começaram a aparecer muitos regimes especiais desonerando, compraram uma espécie de bode expiatório. De onde vamos encontrar mais arrecadação já que estamos desonerando vários setores e a Zona Franca (de Manaus)? Vamos taxar a indústria do petróleo”, disse o executivo.
“Vamos procurar o governo para levar estudos e mostrar que não há precedente internacional que apoie esse tipo de posição, para tentar convencê-lo a manter a alíquota zero”, acrescentou.
O setor da mineração corrobora essa avaliação. “Na hora em que o governo foca apenas no minério de ferro fica visível que a única finalidade do Seletivo é arrecadatória. Se não fosse, ele teria criado um leque maior, feito algum tipo de cruzamento, analisado impacto ambiental”, afirma Rinaldo Mancin, diretor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).
Ele também vê a taxação como inconstitucional. “É uma afronta à Constituição taxar exportação. Não taxar a venda externa é um princípio universal, praticado em países da OCDE”, afirma. “No momento em o Brasil sai da curva, ele está no caminho aposto e isso pode representar perda de mercado”, diz ele, também apontando contradição com a transição energética, que depende dos minerais.
Montadoras ‘surpresas’ com a sobretaxa aos carros
As montadoras de veículos não veem como natural a cobrança do Imposto Seletivo sobre os carros e alegam que a sobretaxa dificultará a renovação da frota, vista como essencial para a descarbonização.
A Anfavea, entidade que representa o setor, manifestou “surpresa” com a inclusão do produto na lista do imposto do pecado. A crítica é de que o tributo joga contra a adoção de tecnologias que estão sendo trazidas ao Brasil, dentro de um ciclo de investimentos que beiram os R$ 130 bilhões – valores que estão sendo aportados exatamente para que os automóveis se tornem menos poluentes, o que inclui a adoção de motores elétricos.
“O setor recebeu com surpresa a proposta de inclusão de automóveis no Imposto Seletivo. A renovação da frota é fundamental para a descarbonização, e o Seletivo tem por objetivo exatamente o contrário – afastar o consumo, tal como ocorre com bebidas alcoólicas e tabaco”, diz a Anfavea, em nota.
A entidade, conforme apurou o Estadão/Broadcast, ainda não definiu como vai reagir, mas o assunto movimenta os grupos de WhatsApp de lideranças do setor desde a noite de quarta-feira, quando saiu o projeto de regulamentação.
A Fazenda alega que a incidência do Seletivo sobre os carros, assim como sobre aeronaves e embarcações, justifica-se pela emissão de poluentes que causam danos ao meio ambiente. A ideia é que as alíquotas variem de acordo com critérios como eficiência energética, reciclabilidade dos componentes e pegada de carbono – isto é, carros mais “limpos” pagariam menos.
A alíquota pode ser zerada, mas desde que os automóveis sejam considerados sustentáveis, enquadrando-se a índices de emissões, reciclabilidade e realização de etapas fabris no Brasil.
Supermercados querem incluir carnes na cesta básica
O setor de supermercados já começou as conversas com parlamentares para incluir as carnes na cesta básica, com imposto zero. O argumento é que a proteína animal pode acabar saindo de vez da dieta dos mais pobres. Pelo projeto do governo, as carnes foram enquadradas na alíquota reduzida, com desconto de 60% da padrão, à exceção de alguns itens considerados de luxo, que pagarão alíquota cheia.
“Tenho a convicção de que o Congresso não vai deixar a população mais pobre sem acesso à proteína animal”, diz o presidente da Associação Brasileira dos Supermercados (Abras), João Galassi.
Na avaliação dele, a tributação sobre as carnes pode subir de uma média ao redor de 7% atualmente para 10,6%, o que pode encarecer o produto de 40% a 50%.
O executivo defende que carnes bovinas, de frango e de suínos devem ser totalmente desoneradas do novo IVA, além dos pescados, com exceção de mariscos. Camarão permaneceria na faixa de redução de 60% e itens como fois gras, ovas (caviar), lagosta e salmão poderiam ficar sem qualquer tipo de desconto, como deseja o governo.
Inicialmente, a Abras propôs uma lista ampla que incluía esses produtos, mas Galassi elogiou a decisão do governo de deixá-los de fora. “Eles fizeram o trabalho correto e olharam no detalhe, NCM por NCM (nomenclatura técnica para designar os produtos na lista de tributação do governo)”, afirma.
O executivo, porém, se queixa que a proposta foi excessivamente restritiva ao excluir as proteínas. “Temos que combater o preconceito que está sendo criado”, afirma Galassi.
“A lógica deles é o seguinte: esse produto é consumido por rico eu não coloco na cesta. Então, é uma discriminação com a pessoa, ela não pode consumir. Não estou falando de artigo de luxo, não. Por exemplo: a imensa maioria da população pobre usa detergente líquido, mas é o sabão em pedra que será desonerado. Nós não vamos dar a oportunidade para a pessoa que ganha R$ 600 comprar o detergente. Vamos alinhar para baixo, não para cima. Vamos desonerar para mantê-lo na pobreza”, diz.
Em entrevista na última quinta-feira, 25, a equipe econômica afirmou, porém, que mesmo fora da cesta básica, as carnes serão menos tributadas na comparação com os preços atuais. A ausência das proteínas foi justificada pelo peso da desoneração desses produtos sobre a alíquota padrão do IVA, estimada, na média, em 26,5%. A inclusão representaria um acréscimo de 0,6 ponto porcentual, o que levaria o novo tributo à maior marca do mundo para impostos sobre o consumo.
Galassi questiona o cálculo, levando em conta o que se recolhe hoje em tributos sobre a venda de proteínas animais: “Esse valor está a anos-luz da realidade”, afirm
Planos de saúde avaliam que foram duplamente prejudicados
O segmento de planos de saúde avalia ter sido duplamente prejudicado pela regulamentação da reforma tributária. Primeiro, porque o texto prevê a incidência do IVA sobre as receitas financeiras das seguradoras, o que representa um custo ao setor. E, segundo, pelo fato de a aquisição de planos coletivos não gerar créditos às empresas empregadoras, o que pode desestimular a contratação do produto como benefício aos funcionários.
“O Brasil está indo na contramão do mundo inteiro. Toda mecânica de IVA, no resto do planeta terra, ou reduz ou zera o tributo para a saúde, exatamente para estimular o setor e para que as pessoas tenham acesso a um serviço essencial. A nossa reforma, pelo contrário, onera”, afirma Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).
“É inacreditável que uma reforma que veio facilitar, desburocratizar e equalizar sistemas puna justamente quem mais precisa do plano de saúde, que é o trabalhador”, afirma ele. “Isso faz com que o setor encolha, com impacto, no médio e longo prazos, no SUS. A gente sabe que a massa trabalhadora que não está na saúde suplementar necessita do sistema público. Ou seja, vai impactar o Orçamento”, diz.
O projeto de lei complementar elaborado pela Fazenda prevê que a aquisição de planos de saúde pelas empresas aos seus empregados não gerará crédito; ou seja, as companhias não poderão abater o IVA pago na etapa anterior da cadeia. A equipe econômica considerou essa despesa como de uso pessoal do funcionário. Pela justificativa do texto, “os beneficiários dos planos de saúde são pessoas físicas”.
Além disso, a regulamentação prevê que as receitas financeiras oriundas de ativos garantidores de reservas técnicas serão tributadas, o que afeta seguradoras e planos de saúde.
“Discordo dessa previsão do PLP (projeto de lei complementar), especialmente no modelo de IVA, em que deve ser tributado o ato de consumo”, afirma Breno Vasconcelos, do Mannrich e Vasconcelos Advogados e pesquisador do Insper. “Os ativos garantidores não são consumidos pelos clientes de seguros e planos de saúde, que contratam a cobertura e não são afetados, por exemplo, por variações negativas desses ativos”, diz o tributarista. Vasconcelos aponta que, hoje, já existe contencioso sobre esse tema, envolvendo tributos federais, com votos favoráveis às empresas no Supremo Tribunal Federal. “Mas, ainda assim, insistiu-se, no PLP, na tese de que essas receitas decorrem da atividade principal desses contribuintes”, destaca o advogado./Colaborou Eduardo Laguna
Fonte: Estadão