Cerveja, refrigerante e gasolina podem aliviar novo IVA, dizem especialistas

Taxa extra sobre produtos que prejudicam saúde e ambiente reduziria alíquota de tributo
Alexa Salomão
Brasília
O imposto seletivo, que prevê uma tributação maior sobre produtos e serviços que prejudicam a saúde e o ambiente, foi criado para inibir o consumo desses itens. No entanto, numa contradição já instalada em inúmeros países, a taxa adicional passou a ser importante fonte de arrecadação, porque as pessoas não pararam de consumir os produtos.
Segundo especialistas, o imposto seletivo pode ajudar a reduzir a alíquota do novo IVA (Imposto sobre Valor Agregado) em discussão na Reforma Tributária que tramita no Congresso.
Os parlamentares trabalham na criação do IVA do tipo dual. Haverá a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) para substituir PIS e Cofins e o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) no lugar do ICMS estadual e do ISS nos municípios. Uma alíquota padrão será dividida entre eles, destinando arrecadação para União, estados e municípios.
O texto, que já passou na Câmara e está em análise no Senado, prevê que o novo imposto seletivo pode ser cobrado sobre bens e serviços nocivos à saúde e ao ambiente. Simples assim.
Essa redação abrangente atende o debate global. A lista sobre o que taxar é cada vez mais ampla, e as alíquotas podem ser muitas e maiores do que o IVA padrão.
A primeira leva de produtos qualificados como prejudiciais, que foram sobretaxados mundo afora, incluiu tabaco, bebidas alcoólicas e combustíveis fósseis, como gasolina, diesel e gás.
A relação, porém, vem se diversificando nos últimos anos, segundo a especialista Rita de La Feria, professora de direito tributário na Universidade de Leeds e pesquisadora associada à Universidade Oxford, ambas no Reino Unido.
Na América Latina, o México foi pioneiro do sugar tax (imposto sobre açúcar). Diferentes países também vêm instituindo a tributação sobre plásticos. A Alemanha incluiu até sacolinhas dentro do grupo de embalagens com esse tipo de material a ser supertaxado.
\”Ninguém ainda tributou, mas a discussão é grande em vários países europeus também em relação à carne, por causa da emissão de gases metano dos bois\”, afirma.
As taxas variam muito entre os países e até entre os tipos de produto. La Feria lembra que os riscos à saúde associados ao consumo de vinho, por exemplo, são diferentes dos identificados para um destilado como a vodca, e isso leva à adoção de alíquotas diferenciadas.
La Feria diz que, politicamente, é muito mais fácil criar e elevar esse tipo de tributo, porque as pessoas reconhecem a sua lógica na busca de benefícios compartilhados. No Reino Unido, o sugar tax é atualizado quase anualmente sem muitos questionamentos.
\”O imposto seletivo é uma área em ascensão no direito tributário, um tipo de taxação em crescimento, e estamos vendo aumento de receita com ele, o que é contraditório ao seu primeiro objetivo: as receitas, afinal, aumentam porque as pessoas não deixam de consumir\”, afirma La Feria.
\”Olhando essa tendência global, ele pode ajudar a reduzir a alíquota geral do novo tributo no Brasil —a quantidade vai depender da reação dos consumidores quando ele for adotado, algo que não podemos prever.\”
O economista Bráulio Borges identificou que, por causa da defasagem do Brasil no uso do imposto seletivo, o potencial é alto, e cita números.
Em 2019, o Brasil arrecadou com correlatos ao imposto seletivo o equivalente 0,9% do PIB (Produto Interno Bruto). Os países da América Latina, na média, arrecadaram quase 2%. Países de renda per capita similar ao Brasil foram além dos 2%.
No Brasil, IPI (sobre cigarro e produtos alcoólicos) e Cide (sobre combustíveis) fizeram o papel de impostos especiais sobre consumo (\”excise taxes\”, para usar o termo em inglês), e o país seguiu um caminho diferente no seu uso.
Em 1990, arrecadou 2,5% do PIB com produtos nocivos saúde. Na média da década de 2000, essa receita caiu para 1,5%. A participação foi reduzindo bastante a partir dos anos de 2010, com as desonerações de combustíveis.
Borges lembra que o Brasil quer ser exemplo na transição energética, então é natural que amplie a taxação de combustíveis e emissões de carbono.
Ele cita trabalho do Banco Mundial que mostra um potencial de ganho adicional na receita de quase 1% do PIB no final desta década com o imposto seletivo só nessa área.
O economista também defende que não faltam argumentos para o país taxar bebidas açucaradas. No início da década de 2000, 12% da população era obesa; no dado mais recente, projeta-se que esse percentual suba para 30% até 2030
Os brasileiros já se mostram sensíveis ao tema. Pesquisa Datafolha encomendada pela ACT Promoção da Saúde identificou que 94% dos brasileiros apoiam o aumento de impostos a produtos que prejudicam a saúde e o ambiente.
\”Sob diferentes aspectos, é factível pensar que o Brasil pode dobrar a arrecadação com esse imposto ou, num cenário otimista, até triplicar\”, afirma Borges.
\”Como o governo diz que não quer elevar a carga tributária, esse adicional de arrecadação poderia ser utilizado para reduzir a alíquota geral de CBS e IBS.\”
As estimativas do próprio governo apontam que a soma dos dois tributos pode levar a uma alíquota entre 20,73% e 27%. A variação vai depender do volume de exceções para alguns itens e serviços que podem ter alíquota reduzida ou zerada. Quanto maior o número de exceções, maior a alíquota geral.
Borges fez suas contas. Primeiro, estimou a carga sobre o consumo a partir dos impostos incluídos na reforma. Constatou que era de 25%, o menor valor desde 1998. Nesse resultado, ponderou as inúmeras exceções criadas na Câmara para vários setores e a análise do impacto delas feita pela Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária. Então, calculou qual seria a alíquota que manteria a carga.
Chegou ao valor de 27,9%, sem considerar ganhos com o fim da sonegação, que ajudam a reduzir a alíquota.
No cenário mais otimista de ganhos com o imposto seletivo e redução de sonegação, no entanto, ele diz acreditar que a alíquota geral poderia ficar mais próxima de 20%.
A estimativa da carga e projeções para o imposto seletivo consta de texto publicado no Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), no qual Borges é pesquisador.
Para aproveitar os ganhos, ele diz que o imposto seletivo poderia ser implementado gradativamente, o quanto antes, para já estar maduro quando o novo IVA entrar em vigor.
\”Se a gente começar já no ano que vem, de pouquinho em pouquinho, a taxar combustíveis fósseis, bebidas açucaradas e outros produtos, a gente pode chegar em 2027 ou 2028 com um volume relevante adicional de arrecadação que permita uma alíquota padrão menor do que a estimada hoje para IBS e CBS\”, afirma ele.
A tributarista Vanessa Canado também concorda que o imposto seletivo tem potencial para reduzir o futuro IVA brasileiro, mas diz que o debate vai ser acompanhado por controvérsias.
\”O crescimento do seletivo sobre bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados, por exemplo, ocorreu muito mais por razões arrecadatórias do que por questões de saúde pública\”, afirma.
\”Foi onde os governos encontraram alternativa para elevar a tributação sem mexer na alíquota geral do IVA.\”
\”As famílias mais ricas consomem sucos naturais ou processados, os mais pobres, os refrigerantes baratos e açucarados. Quando o preço sobe, os mais pobres podem trocar o cigarro com marca por um falsificado, não deixam a bebida alcoólica, e passam a consumir uma alternativa mais barata e de pior qualidade.\”


Fonte: Folha de São Paulo

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