Fazenda naturaliza discurso do Carf como órgão arrecadatório
Nas últimas semanas, intensificou-se o discurso segundo o qual, para o governo, a volta do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é necessária para viabilizar o aumento da arrecadação. A máxima tornou-se naturalizada, a ponto de não causar espanto a suposta utilização de um tribunal como instrumento para a entrada de valores nos cofres públicos.
O argumento consta, inclusive, na justificativa do PL 2384/23, aprovado na última sexta-feira (7) pela Câmara. De acordo com o Executivo, nos três anos que sucederam a instituição do desempate pró-contribuinte, a Fazenda Nacional ganhou, por voto de qualidade, casos de cerca de R$ 177 bilhões. Segundo o Ministério da Fazenda, com a forma de desempate favorável às pessoas físicas e jurídicas cerca de R$ 59 bilhões deixarão de ser arrecadados por ano.
O discurso, a bem da verdade, não vem de hoje. Desde que o ministro Fernando Haddad anunciou o pacote de medidas econômicas, no qual estava incluída a MP 1160/23, com a volta do voto de qualidade, a ligação entre o método de desempate no Carf e a arrecadação começou a ser anunciada.
É uma relação perigosa. Por mais que pertença à estrutura do Ministério da Fazenda, o Carf é um tribunal, e, como todos os tribunais, é, em sua teoria, isento, ou seja, não tende a um lado ou a outro.
É inegável que o voto de qualidade beneficia mais a União do que os contribuintes. O fato, inclusive, está expresso em dados disponibilizados na semana passada pelo próprio Carf. De acordo com o levantamento, em 2019, sob a vigência do voto de qualidade, a União saiu totalmente vitoriosa em processos decididos pela metodologia que corresponderam a R$ 60 bilhões. O valor equivale a 81% do total resolvido pelo método de desempate. Os contribuintes, por outro lado, saíram totalmente vencedores em casos que somavam R$ 253,4 mil, ou 1% do total.
Em 2022, sob a vigência do desempate pró-contribuinte, houve quase uma inversão dos números: as pessoas físicas e jurídicas ganharam R$ 21,5 bilhões, ou 85% dos valores dos processos empatados. A União saiu totalmente vitoriosa em casos que somaram 201,6 mil, ou 1% do total.
Os dados mostram ainda que os empates são incomuns no Carf, mas aplicados em processos de alto valor. Em 2020, por exemplo, em 801 casos houve empate, cerca de 2% do total analisado pelo tribunal. Os processos, porém, envolviam 39,5 bilhões, ou 32% dos R$ 124,1 bilhões julgados no ano.
Pode-se até dizer de uma certa injustiça envolvendo o desempate pró-contribuinte, já que, no caso de vitória definitiva no Carf às pessoas físicas e jurídicas, não é possível à Fazenda recorrer ao Judiciário. Mas dizer que a volta do voto de qualidade é importante pela arrecadação é admitir que o tribunal exerce não só o papel de julgar, mas de manter as autuações fiscais aplicadas pela Receita.
O próprio presidente do Carf, Carlos Higino de Alencar, pareceu discordar do olhar ao conselho como um órgão de arrecadação. “Quem arrecada é a Receita. O Carf não arrecada nada, é um órgão meramente julgador”, afirmou, em entrevista ao JOTA. Como paralelo ele citou a Justiça penal: dar mais celeridade a ela não significa prender ou soltar mais.
Especialistas questionam, ainda, se a expectativa arrecadatória é real, já que, no caso de derrota no Carf, os contribuintes podem recorrer ao Judiciário. A advogada Maysa Pittondo Deligne, sócia da CPMG Advocacia e da Numeris Consultoria, destaca que, de acordo com o texto que vai ao Senado, em caso de decisão por voto de qualidade o contribuinte pode pagar o débito com utilização de prejuízo fiscal e base negativa de CSLL, inclusive de controladora ou controlada, de forma direta ou indireta.
“Se estão dispostos a usar prejuízo fiscal, não vai gerar necessariamente caixa”, diz a tributarista.
É claro que, ao longo da tramitação do PL 2.384/23, foram costuradas outras medidas que, de forma legítima, podem aumentar a arrecadação. Exemplo é a instituição de um novo programa de transação, que possibilita o pagamento de débitos em até 120 vezes, com descontos de até 65% do valor devido. Para pessoas físicas, microempresas e empresas de pequeno porte, o limite de parcelas é de 145, com até 70% de redução.
Outro ponto é a derrubada dos juros e multa em caso de resolução por voto de qualidade no Carf. A possibilidade é válida desde que haja o pagamento do débito em até 90 dias, e pode incentivar os contribuintes a recolher o devido ao invés de recorrer ao Judiciário.
O texto aprovado pela Câmara possui até mesmo tópicos que podem diminuir a arrecadação. É o caso das reduções de multas aplicadas ao contribuinte, ponto bastante elogiado por tributaristas. Segundo o PL, a multa qualificada, cobrada quando há fraude, conluio ou sonegação por parte do contribuinte, passa de 150% para 100%. A penalidade só atingirá 150% nos casos em que for verificada a reincidência do contribuinte.
Ainda segundo o projeto, a multa de 75%, devida em casos de falta de recolhimento e declaração ou de declaração inexata, pode ser reduzida em 1/3 nos casos de “erro escusável do sujeito passivo, cujo comportamento demonstre sua cautela para assegurar o adequado cumprimento da obrigação tributária”. Ainda, poderá ocorrer a redução quando o contribuinte tenha agido “de acordo com as práticas reiteradas adotadas pela Administração ou pelo segmento de mercado em que esteja inserido”.
Para o advogado Breno Vasconcelos, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados e pesquisador do Insper, a mudança é positiva, e vai ao encontro de uma série de recomendações feitas por pesquisadores da FGV Direito SP em março, no âmbito de uma pesquisa sobre multas qualificadas.
O estudo demonstrou que, entre sete países que aplicam a penalidade, a alíquota brasileira, de 150%, é uma das mais altas, além de não ter gradação e ser aplicada a partir de critérios subjetivos. Também foi constatado que, de acordo com a prática internacional, adotar sanções cada vez mais rigorosas não é a melhor estratégia para promover a conformidade tributária.
Bárbara Mengardo – Editora em Brasília.
Fonte: JOTA