Justiça determina novo julgamento após anulação de cobrança de R$ 320 milhões

Uma decisão judicial determinou que o Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Distrito Federal (TARF) julgue novamente um caso em que os conselheiros do órgão reverteram a exclusão de uma empresa atacadista do setor de alimentos de regime tributário especial e anularam um auto de infração que cobrava R$ 322 milhões relativos a débitos de ICMS e multa.
O novo julgamento foi determinado pelo juiz Roque Fabrício Antônio de Oliveira Viel, da 4ª Vara de Fazenda Pública do Distrito Federal, porque a Lei Distrital 6.062/2017, citada como justificativa para as decisões que beneficiaram a empresa, foi considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Veja a decisão.
Devido à declaração de inconstitucionalidade, o magistrado anulou dois acórdãos do tribunal administrativo. Um reverteu a exclusão da Maximus Atacadista Distribuidor de Produtos Alimentícios Ltda. de regime com tributação favorecida do ICMS. O outro anulou um auto de infração cobrando R$322 milhões em débitos de ICMS surgidos após a exclusão do regime, além de multa. O juiz Roque Fabrício Antônio Viel de Oliveira determinou que o tribunal administrativo analise novamente os recursos do contribuinte à luz da inconstitucionalidade da lei distrital. O processo tramita na Justiça sob o número 0712904-19.2022.8.07.0018.
Em sua decisão, o magistrado levou em consideração o fato de que, além da Lei 6.062/2017, o TJDFT julgou inconstitucional a Lei 6.375/2019, com teor semelhante. Ambas alteraram a Lei 5.005/2012, que permitiu a adesão de empresas industriais, atacadistas e distribuidoras do DF a um regime mais vantajoso de apuração do ICMS. Conforme o artigo 97 da Constituição Federal, tribunais podem declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, desde que pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial.
A Lei 6.062 é de autoria do então deputado distrital Rodrigo Delmasso (Republicanos), atualmente secretário da Juventude do Governo do Distrito Federal. Já a Lei 6.375 é de autoria do Executivo do DF. A declaração de inconstitucionalidade se deu, entre outros motivos, porque o TJDFT entendeu que as normas invadiram competência da União. Ambas alteraram os critérios que caracterizam a inadimplência e ensejam a exclusão do regime especial.
A Lei 6.062, citada pelo TARF, acrescentou ao artigo 8° da Lei 5.005/2012 o parágrafo 5º, prevendo que o contribuinte não seria considerado inadimplente se, antes da inclusão do débito em dívida ativa, recolhesse integralmente o valor cobrado. Com base no dispositivo, o tribunal reviu a exclusão da Maximus Atacadista Distribuidor de Produtos Alimentícios Ltda. do regime especial do ICMS. O fisco havia constatado a ausência de recolhimento do tributo desde janeiro de 2012 e, por isso, lavrou um termo de exclusão da empresa do regime diferenciado.
Conforme a ementa do acórdão que reverteu a exclusão, “o fundamento que motivou a exclusão do recorrente do regime especial previsto na Lei 5.005/2012 deixou de ser considerado infração com a alteração introduzida em seu artigo 8°, parágrafo 5º, pela Lei 6.062/2017”. O tribunal administrativo aplicou a lei retroativamente, citando o artigo 106, inciso II, alínea c do Código Tributário Nacional (CTN). Conforme o dispositivo, a lei aplica-se a fato passado quando se trata de ato ainda não definitivamente julgado que deixou de ser definido como infração. A decisão foi unânime. O processo é o de número 040.001664/2017.
Após o TJDFT invalidar a Lei 6.062, o fisco do DF lavrou auto de infração contra a Maximus para cobrança da diferença do ICMS recolhido. No entendimento da fiscalização, com a inconstitucionalidade, a exclusão do contribuinte do regime especial do ICMS voltou a ser válida. Portanto, a empresa deveria recolher o valor cheio do tributo de forma retroativa. A Maximus voltou a recorrer ao TARF (processo 040.00249/2017), que anulou a autuação com base no próprio acórdão anterior, que havia revertido a exclusão do regime especial.
Ação civil pública
A determinação para que o TARF volte a analisar a situação da Maximus Atacadista ocorreu após ação civil pública da Promotoria de Defesa da Ordem Tributária do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Segundo o promotor Rubin Lemos, do MPDFT, a decisão do tribunal administrativo do DF anulando a cobrança de R$322 milhões foi ilegal, uma vez que desconsiderou a declaração de inconstitucionalidade de duas leis.
“O Poder Judiciário não pode impor multa, nem estabelecer penalidade [ao contribuinte]. Como [os julgadores do TARF] não respeitaram sequer o fato de duas normas serem consideradas inconstitucionais, o juiz determinou um novo julgamento”, afirmou Rubin Lemos. O promotor observou que a declaração de inconstitucionalidade das leis distritais ocorreu sem modulação de efeitos. Assim, na prática, o entendimento é aplicável a fatos passados.
O promotor também contestou a argumentação da empresa, de que efetuou o pagamento dos débitos que ensejaram sua exclusão do regime especial do ICMS. “Ela pode até ter pago, mas teria que ter perdido o benefício fiscal. Pois, quando pagou, já havia sido multada”, observou.
A Maximus Atacadista ainda pode recorrer da decisão da 4ª Vara de Fazenda Pública, de primeira instância. A reportagem não conseguiu contato com representantes da empresa para comentar o assunto.
Decisão correta
Para o advogado tributarista Mateus da Cruz, sócio do Dias Lima e Cruz Advocacia, a decisão do juiz Roque Fabrício Antônio Viel de Oliveira foi juridicamente correta. “O julgamento [do TARF] se baseou em lei declarada inconstitucional, que não teve seus efeitos modulados. Essa inconstitucionalidade retroage, como se a lei não tivesse existido. Na minha opinião, está correta a decisão do juiz”, avalia.
Segundo o advogado, não se justifica a permanência da empresa no regime especial do ICMS. “Como a empresa não conseguiu desconstituir os fatos jurídicos formalizados pelo ato declaratório de exclusão e, segundo a narrativa do Ministério Público, só recolheu o tributo em 2017, não se justifica a permanência dela no regime diferenciado”, afirma.
O tributarista destaca ainda que o entendimento do TJDFT ao declarar inconstitucionais as duas leis distritais está alinhado à jurisprudência nacional. “Quando você goza de um benefício fiscal, mas pratica algum ato que enseja a sua exclusão, o ato de exclusão tem natureza declaratória. O ato declaratório só serve para formalizar uma situação que já existia. Se o contribuinte violar uma norma, a exclusão retroage até a data da infração. A partir do momento em que o ato é publicado e surte efeitos, há recolhimento do ICMS normal dali em diante”, diz.
Legitimidade
Já Alessandro Cardoso, sócio do Rolim, Goulart, Cardoso Advogados, lembra que é controversa a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em matéria tributária, como no caso concreto. Conforme o artigo 1°, parágrafo único, da Lei 7.347/1985 “não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”.
Cardoso destaca que a questão foi discutida no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2014, o Plenário do STF julgou com repercussão geral um agravo no recurso extraordinário (RE) 694.294 (Tema 645), decidindo que o Ministério Público não tem legitimidade para questionar, em ação civil pública, a constitucionalidade ou legalidade de um tributo.
Porém, em 2016, no julgamento do ARE 848.968/DF (Tema 56), a 1ª Turma do STF decidiu que o MP possui legitimidade para ajuizar ação civil pública com o objetivo de anular Termo de Acordo de Regime Especial (TARE) firmado entre o Distrito Federal e empresa privada, para estabelecer regime especial de apuração do ICMS, sob o fundamento de que o acordo se mostrava lesivo ao patrimônio público.
Já a 1ª Seção do STJ decidiu, em fevereiro de 2022, no julgamento de embargos de divergência no REsp 1.428.611/SE, que o Ministério Público não tem legitimidade para ajuizar ação civil pública que discuta relação jurídico-tributária, ainda que a causa de pedir se relacione com a concretização de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. O caso tratava de benefício tributário na aquisição de automóveis por portadores de deficiência.
No caso da Maximus Atacadista, o juiz afastou preliminar levantada pelo contribuinte, que alegou a ilegitimidade do Ministério Público para propor a ação civil pública, citando a decisão da 1ª Turma do STF no ARE 848.968/DF.
Porém, na avaliação de Alessandro Cardoso, o Ministério Público não possuía legitimidade no caso específico. “Eu entendo que o MP extrapolou a legitimidade dele, fazendo o papel da Fazenda Pública. A Fazenda poderia ter entrado com uma ação anulatória de decisão administrativa. No mérito, é complicada a defesa da empresa, pelo fato de existir essa declaração de inconstitucionalidade da norma. Certamente, por isso o Ministério Público ajuizou a ação e também devido ao valor elevado do débito. É a primeira vez que vejo uma ação civil pública contra uma decisão administrativa em concreto”, comentou.
A ação tramita com o número 0712904-19.2022.8.07.0018.
Mariana Branco – Repórter especializada em Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).


Fonte: JOTA

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