Receita precisa entender que contribuinte não tem chifre nem rabo, diz tributarista

Para Luiz Gustavo Bichara, acordo do governo sobre voto do Carf tem chance, mas tudo deságua no Parlamento
Joana Cunha
São Paulo
Enquanto o governo e um grupo de grandes empresas encaminha um acordo para derrubar multa e juros nos casos de empate no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), ainda há outros caminhos que poderiam ajudar na arrecadação, segundo Luiz Gustavo Bichara, fundador do Bichara Advogados e procurador especial tributário da OAB. A solução passa por cidadania tributária e respeito a quem paga contas.
\”A Receita precisa superar essa lógica de guerrilha, e entender de uma vez que o contribuinte não tem chifre nem rabo, tampouco cheira a enxofre. Não é possível que contribuinte, na visão da Receita, seja sempre um inimigo, um sonegador contumaz\”, diz.
Bichara, que participou da elaboração da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) levada pela OAB ao STF contra o retorno do voto de qualidade no Carf avalia que a medida ainda pode prosperar.
O sr. ainda acha que a ADI é uma saída possível no impasse? Acredito bastante na possibilidade de procedência da ADI. A meu ver, o STF tem um encontro marcado com esse tema do voto de qualidade. Há uma série de princípios constitucionais que nos fazem crer no sucesso da ação.
O sr. tem acompanhado o diálogo de um grupo de grandes empresas para levar a Haddad uma proposta de emenda à medida provisória que trata do tema? É boa solução a proposta de tirar multa e juro? Tenho acompanhado, e acho que pode ser uma boa solução. Para os contribuintes seria preferível a manutenção da regra aprovada em 2020 e consagrada em mais de uma lei pelo Congresso. Mas o acordo não seria ruim, sobretudo pela exoneração das absurdas multas cobradas pela Receita nas autuações. Além disso, para o futuro, é fundamental que possamos discutir uma gradaç&at ilde;o das sanções, a chamada moderação sancionatória.
Na comissão de juristas nomeada pelo STF e o Senado, que tive a honra de integrar, esse tema foi muito bem endereçado, com o estabelecimento de parâmetros objetivos e concretos para fixação de multa. Chega a ser absurdo que toda divergência entre Fisco e contribuinte venha acompanhada de 75% de multa. Isso inviabiliza por demais as alternativas de solução de controvérsias.
Outros membros da OAB estiveram na reunião de sexta com Haddad para tratar do acordo. Essa conversa tem chance de sucesso? Creio que sim, embora naturalmente tudo vá desaguar no Parlamento. E precisamos lembrar que recentemente a Câmara editou o Projeto de Lei Complementar 17, da relatoria do deputado Pedro Paulo, onde a sistemática do voto de qualidade pró-contribuinte não só foi confirmada como ampliada, para todos os tribunais administrativos do país. O in dubio pro reo é um princípio antiquíssimo de direito, uma noção elementar até.
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Na negociação da proposta, as empresas levaram projeções de arrecadação superior a R$ 100 bi, portanto, acima da previsão inicial do próprio ministro. É possível alcançar isso mesmo? Muito em função da paralisação do Carf, praticamente, nos últimos dois anos, há uma carência grande de números, tornando difícil a tarefa de fazermos estimativas sérias sobre o resultado da medida em termos de arrecadação.
Mesmo que venha essa chance de derrubar multa e juros, muitas empresas devem seguir judicializando? Creio que sim. Sempre que o contribuinte tiver convicção sobre suas chances de êxito, vai preferir seguir litigando. Muitas das teses em discussão no contencioso administrativo já tiveram decisões judiciais favoráveis aos contribuintes. A existência desses precedentes judiciais naturalmente vai desincentivar um acordo.
Auditores da Receita criticam esse possível acordo. Os tributaristas também não gostam da ideia? A Receita precisa superar essa lógica de guerrilha, e entender de uma vez que o contribuinte não tem chifre nem rabo, tampouco cheira a enxofre. Não é possível que contribuinte, na visão da Receita, seja sempre um inimigo, um sonegador contumaz. Temos de pensar em termos de cidadania tributária, e respeitar quem paga conta, sob pena de matarmos a galinha dos ovos de ouro.
Claro que o sonegador deve ser combatido, até porque ele causa distorção ao mercado e prejudica o bom contribuinte. Mas é preciso separar o joio do trigo. Penso que o ministro perdeu uma grande oportunidade, no pacote apresentado em janeiro, de melhorar o instrumento da transação tributária. A saída para reduzir o gigantesco contencioso tributário está aí.
É possível caminharmos na construção de consensos. O pacote propôs uma transação que poderia ser até interessante, na medida em que permite o uso parcial de prejuízos fiscais. Mas por que limitar ao contencioso administrativo? Seria importante ampliar e simplificar o instrumento, facultando acesso a todos os contribuintes. Hoje existem dezenas de tipos de transações diferentes.
Seria importante descomplicar o sistema e pensar numa transação mais ambiciosa, que realmente tivesse o poder de reduzir drasticamente os conflitos entre entre fisco e contribuinte.
Há outros caminhos? Outra coisa que devemos pensar é na solução da cobrança da dívida ativa. Hoje, a dívida ativa federal, isto é, tributos cobrados e não pagos pelos contribuintes e cuja cobrança já foi parar na Justiça, ultrapassa R$ 2,7 trilhões. O índice de recuperabilidade é pouco superior a 1%. Por que não pensar em alternativas? Os entes poderiam vender seus créditos, como faz qualquer credor dos chamados créditos podres. Certamente, a arrecadação seria superior.
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Raio-X
Sócio-fundador do Bichara Advogados, é procurador especial tributário do conselho federal da OAB e membro da comissão de juristas instituída pelo Senado para reforma da legislação sobre processo administrativo e tributário e do comitê de apoio técnico à realização de diagnóstico do contencioso tributário no Conselho Nacional de Justiça.


Fonte: Folha de São Paulo

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