Tributação da cannabis tende a ser seletiva, afirmam especialistas
Com a movimentação para a regulamentação da cannabis no Brasil, crescem os debates sobre a tributação dos derivados da planta para uso medicinal e industrial. Especialistas que acompanham as discussões apontam que a tendência é que o setor tenha uma tributação nos moldes do que ocorre hoje com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que tem como característica a seletividade.
A tributação seletiva leva em conta a essencialidade dos bens e serviços, estimulando ou restringindo o seu consumo. Quanto mais essenciais, menor a alíquota. No caso da cannabis, se a tendência apontada por especialistas se confirmar, as alíquotas dos tributos que vão incidir sobre as diversas operações envolvendo a mercadoria podem variar conforme o seu uso — se medicinal, industrial ou recreativo, por exemplo.
Para se ter uma ideia do potencial da cannabis, segundo pesquisa da consultoria Kaya Mind, somente o comércio de produtos medicinais, o único regulamentado no Brasil, movimentou R$ 130 milhões no país em 2021. O valor representou alta de 124% em relação a 2020. Segundo a consultoria, os valores podem estar subestimados, pois levam em conta só os medicamentos importados disponíveis nas farmácias. No entanto, há outras formas de acesso à cannabis medicinal no Brasil, por meio de associações, judicialização, e, mais recentemente, importação por pessoas físicas.
Um outro estudo, das consultorias New Frontier Data e The Green Hub, projetou uma arrecadação anual de R$ 4,7 bilhões para o Brasil apenas com o setor medicinal, caso seja aprovada uma política abrangente para o uso de cannabis na saúde, incluindo pessoas que apresentam quadro de dor crônica. Neste cenário, segundo a pesquisa, seriam alcançados 4 milhões de pacientes.
Atualmente, a cannabis medicinal no Brasil é regulamentada por duas resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): a RDC 327, de 2019, e a RDC 660, de 2022. A primeira estabelece os critérios para produção, importação, registro e venda de medicamentos à base de cannabis nas farmácias nacionais. A segunda define os critérios para a importação por pessoas físicas.
Rafael Arcuri, diretor-executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), explica que, nos dois casos, a regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não contempla uma produção em larga escala que atenda à demanda para uso medicinal no Brasil. A RDC 327, por exemplo, permite a importação de medicamentos ou do insumo farmacêutico para sua fabricação. No entanto, a Anvisa não permitiu o plantio da cannabis no país para pesquisa e produção de medicamentos.
Além disso, conforme Arcuri, o Brasil não regulamentou o uso da cannabis em outras indústrias além da farmacêutica. “[O termo] cânhamo industrial se refere, normalmente, às aplicações da fibra e da semente [da cannabis]. [São] roupas, alimentos, azeite, bioplástico. Há uma estimativa, que eu considero sobrevalorizada, de 25 mil usos industriais da cannabis”, afirma.
Polêmica
Atualmente, o Projeto de Lei (PL) 399/2015, do deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE), é a proposta para regulamentação do uso medicinal e industrial cuja tramitação mais avançou no Congresso Nacional. Aprovada em 2021 em Comissão Especial na Câmara dos Deputados, a proposta deveria seguir direto para o Senado. Contudo, houve recurso à Mesa Diretora da Casa contra a tramitação conclusiva (sem necessidade de apreciação em Plenário). Agora, é preciso aguardar a decisão para saber se haverá votação no plenário.
Para Arcuri, uma proposta focada apenas nos usos industriais causaria menos polêmica e teria, consequentemente, maior chance de avançar. Segundo ele, ainda há resistência à cannabis medicinal entre os parlamentares conservadores. “[O PL 399/2015] regula tanto a cannabis medicinal quanto o cânhamo industrial. Talvez o ‘sincretismo’ do projeto, ao misturar [cannabis] medicinal e industrial, seja um problema, pois multiplica os fatores de conflito. O cânhamo é [uma discussão] coerente tanto com a pauta conservadora quanto progressista”.
Já a discussão sobre o uso recreativo não tem avançado no país. A diferença entre a cannabis para uso medicinal ou industrial e para uso recreativo é que a destinada a este último fim, em geral, tem uma concentração maior de THC, o componente psicoativo da planta. Nos EUA, por exemplo, se a concentração for até 0,3%, o composto é considerado cânhamo, e, caso seja superior a 0,3%, é considerado marijuana, ou maconha. Os compostos para uso recreativo têm tributação mais pesada em relação aos demais.
Tributação seletiva
Uma vez que os usos da cannabis tenham uma regulamentação mais ampla no Brasil, a preocupação seguinte será a tributação do mercado em formação. Segundo especialistas, a tendência é que seja uma tributação seletiva, nos moldes do que já ocorre com os produtos tributados pelo IPI. Os produtos medicinais, por exemplo, teriam tributação reduzida em relação ao cânhamo industrial. Já os produtos relacionados ao uso recreativo, caso venham a ser permitidos, teriam tributação análoga à do álcool e do cigarro.
“Nos Estados Unidos, principalmente na Califórnia [onde é autorizada a cannabis para uso recreativo], há um imposto seletivo parecido com o nosso IPI, que tem alíquotas altas para tributar o que é nocivo à saúde. Uma discussão importante que teria que ocorrer no Brasil seria o uso medicinal ter uma tributação diferenciada”, afirma Bruno Santo, da área tributária do Finocchi Ustra Advogados. Outro aspecto relevante, para o tributarista, seria estabelecer incentivos à pesquisa para o desenvolvimento de novos medicamentos.
“O Brasil tem uma legislação com incentivo fiscal para empresas que desenvolvem produtos com base em inovação tecnológica. Há políticas de incentivo, como a Lei do Bem, que poderiam estimular as empresas a inovar nesse ramo [da cannabis medicinal]”, comenta. A Lei 11.196/2005, ou Lei do Bem, permite deduzir até 34% dos gastos com pesquisa e desenvolvimento da base de cálculo do IRPJ e CSLL, além da redução de 50% do IPI na compra de máquinas e equipamentos destinados à pesquisa e inovação.
Importação
No Brasil, os derivados da cannabis já regulamentados são tributados como produtos importados, com a incidência do Imposto de Importação, PIS/Cofins e IPI. No caso da importação para uso medicinal por pessoas físicas, o custo elevado é apontado como um problema.
“A gente tem toda a tributação da importação de um produto normal [sobre a cannabis]. A importação é cara porque a gente não tem subsídio como tem para outros produtos. Por isso, o que se está discutindo são as diferentes formas de tributação de acordo com o destino a que [o produto] se propõe, como ocorre com medicamentos e bebidas alcóolicas”, observa o advogado Diogo de Andrade Figueiredo, do Schneider Pugliese.
O advogado explica que a tributação com base na seletividade tem relação com o efeito indutor do tributo. Ele faz uma analogia com a tributação do cigarro. “O efeito indutor é o tributo como forma de estimular ou desestimular o consumo .A gente pode ter o uso medicinal e tributações específicas de acordo com a destinação. Por exemplo, o cigarro é super tributado pelo IPI por causa da seletividade. É um produto que não é essencial, que faz mal para a saúde. Para eventual uso recreativo [da cannabis] a gente poderia ter uma tributação mais onerosa”, diz.
Política tributária
Para o advogado Flávio Sussumu PIzão Yoshida, sócio no Rayes e Fagundes Advogados, o sistema tributário brasileiro está “pronto” para lidar com a regulamentação da cannabis, restando discutir a política tributária de acordo com as características dos produtos.
“A gente está tratando de uma matéria-prima que tem algumas restrições, mas não é diferente de outras. A gente tem uma série de produtos no setor farmacêutico, fibras, tecidos. Existem restrições de produção, mas, uma vez que o mercado se desenvolva, o sistema tributário já está pronto. O Legislativo precisa atuar para definir as políticas tributárias. Acho que o principal seria a gente atribuir um tratamento de acordo com a aplicação do cânhamo. Se é usado no setor de saúde pública, deve ter um tratamento para que possa ser incentivado”, afirma.
Mariana Branco – Repórter especializada em Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Fonte: JOTA