Governo quer flexibilizar regras de fundos de pensão, mas alcance gera impasse
Objetivo é fomentar concorrência; área fiscal teme que migração mais ampla gere fatura para União
Brasília
O governo Jair Bolsonaro (PL) prepara um projeto de lei para alterar as regras de funcionamento dos regimes de previdência complementar de servidores e dos fundos de pensão das estatais. O alcance das mudanças, porém, tem gerado controvérsias internamente.
Enquanto uma ala do governo quer centrar esforços na maior flexibilidade para futuros beneficiários, outro grupo quer ampliar a medida e contemplar participantes atuais —inclusive permitindo a portabilidade daqueles que integram planos de benefício definido, que têm os maiores rombos em suas contas.
Técnicos da área fiscal do governo temem que a proposta mais ampla, que permitiria a migração desses planos para instituições privadas, resulte em uma fatura bilionária a ser aportada de forma imediata pela União e suas estatais.
O impasse deflagrou uma queda de braço nos bastidores, e o projeto segue parado nos escaninhos do Ministério da Economia.
As chamadas entidades fechadas de previdência complementar administram um patrimônio de R$ 1,17 trilhão, sendo que R$ 631,2 bilhões estão nas mãos de fundos de pensão patrocinados por instituições federais.
Apenas os maiores planos de benefício definido de Previ (Banco do Brasil), Petros (Petrobras) e Funcef (Caixa) reúnem R$ 380 bilhões desses ativos.
Nessa modalidade, o funcionário sabe quanto irá receber no futuro, independentemente do valor acumulado ao longo da vida laboral. A oferta desse tipo de plano é cada vez mais rara justamente pela tendência ao desequilíbrio, já que as contribuições recolhidas são insuficientes para bancar os pagamentos prometidos.
Mas os fundos de pensão ainda têm planos de benefício definido em fase de equacionamento, com cobranças extras pagas pelos participantes e suas patrocinadoras ao longo dos anos para amenizar o déficit.
Funcionários ativos e aposentados dos Correios, por exemplo, pagam valores extras ao fundo de pensão Postalis para cobrir um déficit de cerca de R$ 6 bilhões acumulado entre 2012 e 2014. Na Funcef, participantes de um dos planos chegam a pagar contribuição extra de 19,16% sobre a remuneração para ajudar a equacionar um rombo avaliado em R$ 20 bilhões.
O rascunho original com as mudanças planejadas pelo governo, obtido pela Folha, prevê mais flexibilidade para futuros beneficiários e permite a contratação de instituições privadas para administrar os planos de aposentadoria de funcionários públicos. Ela foi elaborada pelo grupo de trabalho IMK (Iniciativa de Mercado de Capitais) e tem apoio da área fiscal do governo e do Ministério do Trabalho e Previdência.
Já a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, órgão responsável pelo relacionamento do governo com suas estatais, defende uma proposta mais ampla, que estende a flexibilização a participantes atuais e permite a portabilidade de todos os planos.
Em uma primeira rodada de negociações, o grupo de trabalho IMK concordou em autorizar a portabilidade para atuais participantes de planos com contribuição definida. Nessa modalidade, os pagamentos são fixos, e o valor do benefício é calculado de acordo com o que foi acumulado. No entanto, eles representam uma fatia bem menor do patrimônio dos fundos: R$ 153,3 bilhões, considerando patrocinadores públicos e privados.
O impasse permanece envolvendo os participantes dos planos de benefício definido, cujos ativos somam R$ 711,4 bilhões.
O ex-secretário de Desestatização, Desinvestimento e Mercados Diogo Mac Cord comandou as discussões da proposta mais ampla no órgão, que segue participando dos debates mesmo após sua saída do cargo.
À Folha ele defende maior liberdade aos participantes atuais dos fundos de pensão sob o argumento de que os recursos foram, no passado, usados para financiar projetos guiados por interesses políticos, resultando em prejuízo a seus beneficiários.
Segundo Mac Cord, \”o benefício definido já não é tão definido assim\”. \”Hoje você está com uma contribuição extraordinária de 25%? Amanhã pode ser 30%, depois 35%\”, diz ele, ressaltando que a alíquota maior significa, na prática, um corte do benefício. \”[A proposta é] Cada um escolhe, [o participante] pode querer fazer um stop loss [estancar as perdas].\”
Ele também rebate críticas de que o projeto causaria desequilíbrio nos fundos e um custo para a União e suas empresas. \”Você não precisa permitir a portabilidade instantânea, a cada dia, a cada mês. Pode definir janelas a cada cinco anos\”, afirma.
As contribuições extraordinárias já pagas pelas patrocinadoras, por sua vez, poderiam seguir o fluxo atual de pagamento, com a única diferença de que o repasse seria feito à entidade escolhida pelo participante. Assim, segundo Mac Cord, não haveria risco de aportes bilionários imediatos.
\”Você pode definir as regras, mas o mais importante é o direito de escolha. O que não pode é condenar aquela pessoa a ficar os 30 anos da vida dela [na mesma entidade]\”, diz.
Mac Cord sugere ainda que a portabilidade dos atuais participantes seja permitida até um limite do patrimônio do plano, justamente para não haver um descasamento entre os investimentos do fundo e suas obrigações com benefícios.
Em busca de rentabilidade, os fundos de pensão aplicam recursos em diferentes investimentos, que vão desde títulos públicos de médio e longo prazo (até 40 anos) até papéis privados ou participações em projetos de infraestrutura.
O temor dos críticos da portabilidade é que um resgate imediato em volume significativo de recursos, com o objetivo de migração para outra entidade, comprometa ou desincentive esse tipo de investimento.
\”A migração poderia quebrar a estruturação de um contrato de longuíssimo prazo. Parece precipitado e equivocado\”, critica o presidente da Abrapp (Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar), Luís Ricardo Martins. \”Eu não vejo como desestruturar e tentar levar reservas do passado para as entidades abertas.\”
Para o presidente da Abrapp, os fundos de pensão são hoje um dos poucos instrumentos para a formação de poupança de longo prazo, e a sua descaracterização pode comprometer projetos que precisam dessa fonte de financiamento. \”Há toda uma estruturação de investimentos dentro de um plano, tem uma reserva formada\”, diz.
Segundo ele, a reforma da Previdência aprovada em 2019 abriu caminho para a regulamentação da relação entre o poder público e as entidades abertas, mas ele diz que as seguradoras oferecem produtos com \”caráter mais financeiro\”, enquanto os fundos de pensão não têm fins lucrativos e, por isso, oferecem taxas diferenciadas de administração.
\”É uma discussão muito maior do que a questão pontual da portabilidade\”, afirma.
Ele também destaca que, após a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos Fundos de Pensão, criada em 2015, as \”inconsistências\” detectadas nos investimentos dessas entidades foram corrigidas. \”O sistema hoje está blindado, esse passado está resolvido\”, afirma Martins.
Apesar das controvérsias, há outros pontos consensuais do projeto. Entre eles, a permissão para órgãos públicos patrocinarem planos geridos por entidades abertas de previdência complementar, como seguradoras. Elas seriam escolhidas após seleção pública, seguindo critérios de transparência, qualificação técnica, impessoalidade e economicidade.
Hoje, União, estados, municípios e suas estatais podem financiar apenas planos administrados por entidades fechadas, como os fundos de pensão. A mudança segue uma lógica de maior competição.
A minuta também obriga empresas estatais e sociedades de economia mista (como a Petrobras) a oferecer a seus funcionários planos em mais de uma entidade.
O texto ainda permite aos órgãos públicos fazer a inscrição automática de seus funcionários em planos de previdência complementar, cabendo a eles requerer o cancelamento em caso de desinteresse. Hoje, a lógica é inversa. O argumento do governo é que a alteração fomenta a inclusão previdenciária e a formação de poupança.
Fonte: Folha de São Paulo