Entendimento do Carf sobre concomitância de multas vai na contramão da Justiça
Em posicionamentos recentes, Conselho entendeu que multas isoladas e de ofício são penalidades para infrações distintas
om decisões recentes contra os contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a concomitância das multas isolada e de ofício por falta de recolhimento de estimativas vem seguindo na direção oposta na esfera judicial. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e da Justiça Federal tem declarado a ilegalidade da concomitância das penalidades.
Enquanto, em posicionamentos recentes, o Carf entendeu que as multas isoladas e de ofício são penalidades para infrações distintas, para o STJ aplica-se a esses casos o princípio da consunção, em que uma penalidade absorve a outra. Assim, a multa de ofício absorveria a multa isolada.
Em fevereiro, a 3ª Turma da Câmara Superior do Carf julgou uma série de casos em que formou maioria para permitir a concomitância das penalidades. Entre eles, estava o processo 10166.731074/2014-66, da Expressa Distribuidora de Medicamentos Ltda.
A nova posição surpreendeu os contribuintes, pois, em agosto de 2021, a 1ª Turma da Câmara Superior afastou a concomitância das multas no processo 10882.721522/2017-71, da Kingstar Colchões Ltda., revertendo o entendimento até então pró-fisco. A decisão foi proferida pelo desempate pró-contribuinte.
A expectativa entre os advogados que atuam no Carf era que o tribunal passasse a adotar um entendimento alinhado com o do Judiciário, de impossibilidade da concomitância. No entanto, a discussão sobre o tema acabou migrando de turma em razão da Portaria Carf/ME 12.202, que, em outubro do ano passado, estendeu à 2ª e à 3ª Turmas da Câmara Superior a competência para julgar temas antes exclusivos da 1ª Turma, sob a justificativa de equilibrar a quantidade de processos em estoque.
A impossibilidade da concomitância das multas é matéria sumulada no Carf. Segundo a Súmula 105, “a multa isolada por falta de recolhimento de estimativas, lançada com fundamento no art. 44 § 1º, inciso IV da Lei nº 9.430, de 1996, não pode ser exigida ao mesmo tempo da multa de ofício por falta de pagamento de IRPJ e CSLL apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício”.
Contudo, com a edição da lei 11.488/2007, que alterou o artigo 44 da lei 9.430, uma corrente no tribunal administrativo passou a defender que o enunciado da súmula só se aplicaria às penalidades lançadas com base na redação original do dispositivo, ou seja, antes de 2007. Para conselheiros defensores dessa interpretação, a nova redação teria deixado claro que se trata de penalidades para infrações distintas.
O entendimento foi adotado pela 3ª Turma em fevereiro. Para os conselheiros, a impossibilidade de concomitância prevista na Súmula Carf 105 só se aplicaria a casos anteriores a 2007, em razão de alteração legislativa sobre o tema.
Bis in idem
“[Os que defendem a possibilidade de concomitância] acham que seriam duas obrigações independentes. A obrigação de antecipar o imposto mensalmente [recolhimento de estimativas, cujo não pagamento atrairia a multa isolada] seria autônoma em relação ao pagamento do imposto no final do ano [cujo descumprimento enseja a multa de ofício]. Mas tem toda uma lógica do Imposto de Renda de que realmente teria uma unicidade, em que o fato gerador anual absorve os fatos geradores mensais”, acredita o tributarista Júlio Assis, sócio do Ferraz de Camargo e Matsunaga Advogados.
“Os tribunais têm decidido afastar a concomitância, pois entendem que geraria bis in idem [duas punições para a mesma conduta], o que é proibido e seria uma penalidade desproporcional”, comenta Alexandre Monteiro, do Bocater Advogados.
O STJ aplica aos casos de concomitância das multas isoladas e de ofício o princípio da consunção, originário no Direito Penal. Pelo princípio, a infração mais grave absorve a de menor gravidade. Por analogia, no Direito Tributário, a penalidade mais gravosa (multa de ofício) absorve a mais leve (multa isolada). A posição é pacificada na Segunda Turma da Corte.
O entendimento foi expresso originalmente no Recurso Especial (REsp) 1.496.354/PR, julgado em 2015, de relatoria do ministro Humberto Martins. Foi adotado, ainda, no REsp 1.878.192/SC (2021, ministro Herman Benjamin); REsp 1.603.525/RJ (2020, ministro Francisco Falcão) e REsp 1.815.945/RS (2019, ministro Sérgio Kukina).
Na Justiça Federal, magistrados têm seguido o entendimento firmado no STJ. Há precedentes favoráveis aos contribuintes em todos os Tribunais Regionais Federais (TRFs). No TRF1, são os processos 1007453-19.2018.4.01.3400 e 1003131-53.2018.4.01.3400; no TRF2, processo 011624-86.2014.4.02.5101; no TRF3, processos 5007941-60.2019.4.03.6100 e 5006688-33.2021.4.03.0000; no TRF 4, o processo 5007422-47.2019.4.04.7009 e, por fim, no TRF5, o processo 0802041-07.2016.4.05.8200.
Pacificação
“Tem precedentes favoráveis e a tendência é que o Judiciário reconheça a tese favorável aos contribuintes”, afirma Alessandro Cardoso, do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados. O tributarista criticou a alteração na competência das turmas do Carf, que, segundo ele, criou insegurança jurídica para o contribuinte que recorre na esfera administrativa.
“Não é uma boa política, em termos de lógica de julgamento, fazer essa transferência de matérias entre as turmas. Primeiro, porque as turmas são especializadas. Segundo, porque o objetivo maior da Câmara Superior é pacificar o entendimento do Carf com relação à interpretação da legislação tributária federal. A partir do momento em que se transfere a competência e tem duas turmas diferentes julgando o mesmo tema, abre espaço para isso, para uma situação de insegurança jurídica para o contribuinte”, avalia.
Para Alexandre Monteiro, na falta de um entendimento consolidado no Carf, o contribuinte tende a se voltar para a via judicial. “Acho que as defesas vão continuar acontecendo no âmbito administrativo e, no caso de derrota, o que vejo é o contribuinte levando essa questão para os tribunais”, afirma.
Na visão de Júlio Assis, a questão só será pacificada com eventual decisão do STJ na sistemática dos recursos repetitivos, o que vincularia o Carf. “Seria interessante para que se pudesse levar essa pacificação ao Carf. Seria a única forma de atenuar essa oscilação. As decisões do STJ têm sido bem robustas quando trazem essa teoria da consunção”, diz.
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Mariana Branco
Fonte: JOTA