Melhora fiscal estrutural ou ilusória?

Na guerra de narrativas sobre a situação das contas públicas no Brasil, versão triunfalista do governo não convence, mas tampouco é crível excesso de pessimismo que ignora melhora concreta dos números.
Fernando Dantas

No Projeto de Lei Orçamentária de 2021, aprovado em agosto de 2020, estava previsto um déficit primário de R$ 234 bilhões. O resultado efetivo do ano passado foi de um déficit primário do governo geral de R$ 35 bilhões, ou, seja, R$ 200 bilhões melhor do que a primeira projeção (o setor público consolidado teve superávit de R$ 64,7 bilhões, puxado pelo superávit de R$ 97,7 bilhões de Estados e municípios).

Em abril de 2021, a projeção oficial para a dívida bruta do governo geral (DBGG) e para a dívida líquida do setor público (DLSP) no fim do ano passado era de, respectivamente, 87,2% e 65% do PIB. Oito meses depois, a DBGG fechou 2021 em 80,3% do PIB e a DLSP, em 57,3%.

Entre abril e novembro do ano passado, a projeção oficial da DBGG e da DLSP para o final de 2030 saiu de, respectivamente, 83,6% e 75,4% do PIB para 76,6% e 68,2% do PIB.

Não obstante esses números, 69% dos respondentes do questionário pré-Copom do Banco Central de fevereiro apontam que o cenário fiscal e os riscos envolvidos pioraram. Para 22% não houve mudança relevante e 10% apontam melhora.

É verdade que base de comparação da pergunta do questionário é a reunião do Copom anterior, de 7 e 8 de dezembro, que já incluía a melhora da perspectiva fiscal descrita acima. E o noticiário sobre contas públicas a partir do final do ano passado foi bem negativo, com a PEC dos precatórios e agora a conversa de desoneração de combustíveis, entre outros sinais de populismo eleitoral.

Ainda assim, o contraste entre a forte melhora das perspectivas fiscais e o pessimismo dos analistas chama a atenção.

Os economistas Juliana Damasceno e Bernardo Motta, do FGV-Ibre, que recentemente apresentaram análise desses e outros números e dados sobre a situação fiscal brasileira, chamam a atenção também para o contraste entre a narrativa do governo e o pessimismo do mercado.

Em diversas notas do governo, mencionam-se “elevação estrutural adicional [da arrecadação], “crescimento estrutural”, “consolidação fiscal em curso”, “maturidade institucional e técnica” e, em relação a 2021, “um dos maiores ganhos fiscais na comparação com 2020 entre as maiores economias do mundo”.

É uma linguagem quase triunfalista que, como a própria melhora concreta das perspectivas de resultado primário e de evolução da dívida pública, não consegue convencer os investidores e analistas, o que se reflete no prêmio de risco dos papéis do governo brasileiro.

Na análise do resultado de 2021, os dois economista citam alguns fatores que são de fatos não só fortuitos como tendem a não se repetir: efeito-base, isto é, a comparação com 2020, que teve queda do PIB e diferimento de tributos; a alta da inflação que, espera-se, reverta-se a partir de 2022; e o “ajuste forçado” das despesas com pessoal, pela lei complementar 173 (associada ao estado de calamidade pública de 2020), que evitou que Estados e municípios elevassem salários até o final de 2021, mas não neste ano eleitoral.

Outros fatores, entretanto, mesmo que fortuitos, podem continuar ajudando a política fiscal: alta das commodities, câmbio desvalorizado, fim gradual das despesas com a Covid-19, fatores não recorrentes (que acontecem quase todos os anos, e sobre os quais a política pública tem até capacidade de definição, como privatizações) e “gastos previdenciários começando a mostrar com mais força o resultado da reforma da Previdência”.

É enfim, uma mistura de fatores que ocorrem uma única vez com outros que podem ter seus efeitos prolongados nos próximos anos. Se é arriscado e precipitado dizer, como o governo, que o Brasil vive uma melhora fiscal estrutural, também parece exagero afirmar que a melhora é totalmente acidental e ilusória.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)


Fonte: Estadão

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