Caminhos para bloquear o Telegram no Brasil levam ao Supremo
Seja na Justiça Eleitoral ou na comum, eventual decisão de tirar o aplicativo de mensagens do ar deve ser questionada no STF
Em dezembro, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, enviou um ofício em inglês que se encerra com um convite ao diálogo: “I hope to hear from you soon” — “aguardo retorno de você em breve”.
O destinatário era Pavel Durov, cidadão russo de 37 anos, morador do emirado de Dubai, cofundador e CEO do Telegram, presente em 53% dos celulares brasileiros. O ministro menciona o dado no texto e acrescenta que “teorias conspiratórias e informações falsas sobre o sistema eleitoral estão sendo disseminadas no Brasil” por meio do aplicativo de mensagens.
Em sua página de perguntas frequentes, o Telegram afirma que, “até hoje, compartilhamos 0 bytes de dados de usuários com terceiros, inclusive governos”. Como tantas outras autoridades, Barroso foi ignorado.
Na quarta-feira passada (19/1), o ministro disse na Casa JOTA que pretende debater com os colegas de tribunal possíveis providências contra o Telegram, indicando a possibilidade de bloqueio do aplicativo.
A Justiça Eleitoral é apenas um dos caminhos possíveis para que isso ocorra. Assim como aconteceu duas vezes com o WhatsApp, que pertence à empresa Meta (ex-Facebook), juízes de primeira instância também poderiam determinar um eventual bloqueio do Telegram. As rotas têm em comum a alta probabilidade de confluírem ao Supremo Tribunal Federal.
Justiça Eleitoral
“O arranjo institucional entre o TSE e o STF é muito especial”, comenta Diogo Rais, professor de Direito Eleitoral na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Para ele, caso o bloqueio ocorra por decisão do tribunal eleitoral, deverá haver articulação prévia com o STF — conforme indica também a fala do ministro Barroso.
“O TSE é composto por sete ministros efetivos e sete substitutos. Do STF, vêm três efetivos e três substitutos”, segue Rais com o raciocínio. “Simultaneamente, há seis representantes do STF no TSE, ou seja, a maioria dos onze ministros também está no tribunal eleitoral.”
Partidos políticos contrários ao bloqueio do Telegram teriam legitimidade para propôr ações no Supremo questionando uma eventual decisão do TSE. O Partido Liberal, ao qual o presidente Jair Bolsonaro se filiou no ano passado para concorrer à reeleição, seria forte candidato a tomar a dianteira da causa.
Porém, como a maioria dos ministros do STF compõe o tribunal eleitoral e deve anuir com uma eventual decisão antes do bloqueio, as chances de o Supremo revertê-la seriam menores do que no caso de uma decisão oriunda de instâncias ordinárias. Além da possibilidade de adiar a decisão indefinidamente, por meio dos instrumentos regimentais que os ministros dispõem para tanto.
Atualmente, há duas ações em tramitação no tribunal relacionadas ao tema, ambas questionando se o Marco Civil da Internet pode determinar a suspensão ou o bloqueio de um serviço oferecido por uma empresa que se recusa a passar informações à Justiça.
As ações tratam de casos envolvendo o WhatsApp.
“No primeiro bloqueio, ainda não havia criptografia ponta-a-ponta e eles não tinham representação no Brasil. Havia o Facebook, mas eles não se responsabilizavam pelo WhatsApp”, relembra a procuradora da República Fernanda Domingos, do Ministério Público Federal de São Paulo, que atua em casos de crimes cibernéticos.
“O segundo bloqueio aconteceu mais por um desconhecimento sobre a tecnologia de criptografia ponta-a-ponta”, afirma Domingos. “Naquele momento, ou o WhatsApp não respondia ou apresentava respostas em inglês.”
Desde a adoção da tecnologia de criptografia ponta-a-ponta como padrão, o WhatsApp não é tecnicamente capaz de acessar o conteúdo das mensagens trocadas por seus usuários. Os conteúdos são codificados e decodificados apenas nos aparelhos dos usuários — daí o termo “ponta-a-ponta”.
No entanto, a empresa tem acesso a metadados — por exemplo, quais usuários conversam entre si, em que grupos cada usuário participa, que usuários compõem um determinado grupo, quais mensagens estão sendo repassadas com muita frequência, entre outras milhares de informações.
Atualmente, o WhatsApp mantém representação no país e coopera com autoridades brasileiras. “Informações de grupos, informações cadastrais, o que não seja conteúdo de mensagens, eles fornecem com ordens judiciais sem problema nenhum”, afirma Domingos. “Naqueles casos [em que houve bloqueio], na minha visão, o que irritou os juízes é que eram investigações muito graves e eles já tinham tentado aplicar multa.”
A postura atual do WhatsApp é diametralmente oposta à do Telegram. “Eles não respondem nunca, para ninguém”, diz a procuradora da República. “Ignoram todas as autoridades”, ela resume.
“A empresa não dá nem bom dia”, concorda Diogo Rais. “Ignora por completo a força do Poder Judiciário brasileiro”, diz o professor. “Isso mostra uma política organizacional refratária, afastada de qualquer instituição, de qualquer país.”
Em entrevista à Marie Claire, na semana passada, a ministra substituta do TSE Maria Claudia Bucchianeri ecoou esse pensamento: “O Marco Civil só responsabiliza plataformas digitais se descumprirem ordens judiciais, e temos uma plataforma que não recebe ordem judicial. Isso precisa mudar”, ela disse. “Proibiremos o Telegram no Brasil? Algo precisa ser feito.”
As ações em tramitação no STF relacionadas aos casos do WhatsApp têm relatorias da ministra Rosa Weber e do ministro Edson Fachin. Nos dois casos, os relatores votaram pelo entendimento de que juízes não podem determinar o bloqueio de aplicativos de mensagens por descumprimento de ordem judicial.
Ambas as ações, no entanto, estão paradas desde maio de 2020 após pedidos de vista do ministro Alexandre de Moraes. Ele também relata o inquérito das fake news, que investiga a atuação de redes coordenadas de desinformação, inclusive no Telegram.
Em outubro, durante o julgamento no TSE das ações que pediam a cassação da chapa Bolsonaro–Mourão pelo uso de disparos em massa nas eleições de 2018, Moraes foi taxativo ao dizer que naquele ano “houve disparo em massa”. “Se os autores da ação negligenciaram a prova, isso é outra questão. Há gabinete de ódio”, continuou o ministro.
“A Justiça Eleitoral pode ser cega, mas não pode ser tola. Não podemos aqui criar de forma alguma um precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu. Todo mundo sabe o mecanismo utilizado nas eleições e depois das eleições.”
Justiça Comum
Enquanto as ações no Supremo não são decididas, com uma conclusão sobre a validade do trecho específico do Marco Civil da Internet, permanece no ar também a possibilidade de juízes de primeira instância determinarem o bloqueio do Telegram — assim como ocorreu nas ações envolvendo o WhatsApp.
Essa alternativa, sem articulação com o STF, teria menos chances de prosperar e ser duradoura do que a saída pela via da Justiça Eleitoral, segundo avaliam os entrevistados. “Deve haver gravidade suficiente que justifique esse pedido, mas isso não depende da gente, depende das investigações”, diz a procuradora da República Fernanda Domingos.
“Esse cenário é razoável, considerando todo esse processo”, afirma Rais, ressaltando que uma eventual decisão com base no Marco Civil da Internet chegaria, de novo, ao Supremo. “É como se todos os caminhos levassem ao ministro Alexandre de Moraes.”
Um deputado federal que participou das discussões durante a tramitação do Marco Civil da Internet opina, em condição de anonimato, que não há outra saída viável senão bloquear o Telegram. Para ele, não seria possível fazer a empresa colaborar com as autoridades apenas por meio de mudanças legislativas. “O problema não é a lei, é o Telegram.”
Já o deputado Vinícius Poit (Novo-SP), que presidiu a Frente Digital no biênio 2020–21, acredita que um eventual bloqueio feriria direitos fundamentais tanto da empresa como de usuários. “Uma possível decisão nesse sentido implicaria negativamente na promoção do acesso à informação”, afirma.
“Existe um abuso de poder monocrático, ao passo em que por meio de uma única decisão proferida por um magistrado pode ser determinado o bloqueio de uma plataforma”, ele diz. “Qualquer decisão desse tipo deveria, ao menos, ser colegiada.”
Poit lembra que o texto do PL 2.630/20, conhecido como PL das Fake News, busca limitar a distribuição em massa de conteúdos em aplicativos de mensagens. O projeto foi aprovado no Senado, mas ainda precisa passar pela Câmara. O deputado acredita que uma mudança legislativa nesse sentido também feriria a liberdade de empresas e usuários.
“Atacar a questão da disseminação de conteúdos por meio de um contingenciamento do alcance de compartilhamento e limitando a quantidade de usuários em grupos é uma questão delicada”, avalia. Para o deputado, uma mudança nesse sentido implicaria “na interferência do Estado em empresas privadas”.
Alcance
As “milícias digitais” citadas por Moraes em sua decisão poderiam ser desarticuladas no Telegram caso o serviço fosse bloqueado no Brasil. Mas permaneceriam ativas em outras plataformas e, além disso, poderiam continuar acessando o Telegram por meio de VPNs (“virtual private network”, em inglês, “rede virtual privada”) — método capaz de dissimular a origem do tráfego de dados —, mesmo que com alcance menor.
“Para um usuário comum, cortaria o acesso. Um usuário mais sofisticado, que vai na dark web ou faz qualquer coisa do tipo, conseguiria acessar”, diz o engenheiro de telecomunicações Eduardo Tude, presidente da Teleco, empresa de consultoria do setor.
“Para o Telegram em si, que é quem a Justiça pretenderia atingir, seria um baque, representaria perda de usuários no Brasil”, ele afirma. Decisões judiciais do tipo são cumpridas pelas prestadoras de acesso à internet. “As empresas têm ferramentas que identificam esse tráfego”, explica Tude.
Das pessoas que têm acesso à internet no Brasil, 98% se comunicam pelo WhatsApp ao menos uma vez por mês. O percentual de uso do Telegram é de 53%, segundo dados do ano passado. Apesar da diferença relevante na quantidade de usuários nas duas plataformas, conteúdos podem viralizar muito mais rapidamente no Telegram. O limite em um grupo de WhatsApp é de 256 pessoas. No Telegram, é de 200 mil pessoas.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) criou um canal de distribuição oficial no aplicativo no início de 2021. Em outubro, quando os serviços do Facebook — inclusive o WhatsApp — saíram do ar em todo o mundo durante cerca de sete horas, o Telegram aumentou sua base em 70 milhões de usuários em um único dia. Naquele mês, Bolsonaro chegou à marca de 1 milhão de inscritos em seu canal.
Uma estratégia usada pelo presidente para aumentar o alcance de seu canal no Telegram é divulgá-lo em plataformas com mais usuários brasileiros, incentivando que usem o aplicativo para receber informações.
No Twitter, onde tem 7 milhões de seguidores, Bolsonaro mantém no perfil um link para seu canal de distribuição no Telegram, que tem pouco mais de 1 milhão de inscritos.
No Instagram, onde tem 19 milhões de seguidores, o presidente possui um link para seu perfil no Gettr, rede fundada por um ex-auxiliar de Donald Trump e usada por ativistas de extrema-direita, onde Bolsonaro tem 582 mil seguidores.
Outros pré-candidatos à presidência também têm canais oficiais no Telegram, porém com números muito menores que os de Bolsonaro:
O ex-presidente Lula da Silva (PT) possui 47 mil inscritos;
O ex-ministro Sergio Moro (Podemos) disse em depoimento na Operação Spoofing que deixou de usar o Telegram por não considerar o aplicativo confiável. A investigação apura o vazamento de mensagens trocadas entre ele e procuradores da Lava Jato por meio do aplicativo, no caso que ficou conhecido como Vaza Jato, após reportagens do site The Intercept Brasil. Moro não tem canal oficial no Telegram;
O ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) tem 19 mil inscritos;
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), não possui canal pessoal. O governo paulista mantém um canal institucional com 19 mil inscritos.
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Alexandre Aragão – Repórter freelancer.
Fonte: JOTA