Para especialistas, transação é um bom caminho para empresas em recuperação judicial

Instrumento tem sido aliado de empresas com dificuldades financeiras e benéfica também para a PGFN

O ano de 2021 ficará marcado na história do direito empresarial brasileiro como um divisor de águas na relação entre fisco e contribuintes que estão em processo de recuperação judicial. Após mais de 15 anos de impasses para a resolução de passivos fiscais por empresas que buscam se soerguer, uma nova dinâmica tem ganhado projeção nesta área: a utilização do instrumento da transação tributária, principalmente a modalidade de acordos individuais.

Disciplinado pela Lei nº 13.988/20, o instrumento tem sido utilizado para negociar com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) o parcelamento dos débitos fiscais de empresas em recuperação judicial em condições avaliadas por advogados da área ouvidos pelo JOTA como bastante favoráveis para os contribuintes que estão com dificuldades financeiras.

Isso foi possível após aprovação, em janeiro deste ano, da Lei 14.112/20, que reformulou a Lei de Recuperação Judicial e Falências (11.101/2005) e trouxe uma série de possibilidades para resolução de passivo fiscal por meio da transação tributária, com alterações na sistemática de parcelamento e de desconto. Logo em seguida, em março deste ano, a Portaria da PGFN nº 2.382/21 disciplinou as regras para esse tipo de negociação.

As modificações levaram a uma ampliação do prazo para a quitação de débitos tributários federais em até 120 meses, além de aumentar o limite máximo de redução do crédito tributário transacionado para até 70% e criar a possibilidade de utilização de prejuízos fiscais para liquidação de até 30% do débito tributário.

Anteriormente, as possibilidades de transação para empresas em RJ ficavam limitadas ao prazo máximo de 84 meses. Já os descontos não podiam superar 50% do valor total dos créditos transacionados. Disputas judiciais intermináveis em torno dos débitos tributários, entretanto, costumavam adiar uma negociação por anos. Tanto que a própria PGFN já classificava esse tipo de dívida como irrecuperável.

“As mudanças legislativas têm sido favoráveis para resolução dos passivos fiscais. O prazo [para pagamento] fica bastante estendido e não há a necessidade de que as parcelas sejam fixas”, explica Karem Jureidini Dias, sócia do Rivitti e Dias Advogados.

“Você consegue escalonar os pagamentos para se adequar às necessidades de cada caso. Em um processo de RJ [recuperação judicial], no início você tem pagamentos altos de classe trabalhista e credores que já têm garantias. Então, no acordo de transação, pode começar pagando para o fisco um valor menor e aumentar gradativamente, a partir de uma engenharia financeira”, complementa a tributarista.

Segundo Carla Mendes Novo, pesquisadora do Núcleo de Tributação do Insper e advogada no Mannrich e Vasconcelos Advogados, a possibilidade de resolução de passivos fiscais via transação em processos de RJ tem se popularizado e se mostrado um movimento importante para o ambiente de negócios do Brasil. “O objetivo de uma recuperação judicial é, justamente, viabilizar que a empresa retome suas atividades. E os débitos tributários são muito importantes nesse contexto”, diz.

A pesquisadora cita que no último relatório do Núcleo de Tributação do Insper, divulgado em fevereiro, dos 27 termos de transação individual celebrados, ao menos um terço são referentes a empresas em RJ ou falência. “Isso mostra como o instrumento tem sido muito importante para as empresas se recuperarem”, complementa.

Ganho para a PGFN
A implementação da transação tributária neste contexto tem sido relevante não só para as empresas, mas também para a PGFN. Antes de o instrumento ser institucionalizado no Brasil, as dívidas com o fisco tinham pouca relevância no contexto de uma recuperação judicial e, por isso, recebiam menos atenção.

“Nós estamos bastante satisfeitos com os primeiros resultados. Desde o começo não tínhamos a expectativa de que ia mudar tudo do dia pra noite, claramente. Porque foram anos de uma jurisprudência bastante contrária à PGFN, sem instrumentos razoáveis para empresas em RJ buscarem solucionar seu passivo fiscal. Está sendo até um pouco melhor do que a gente esperava”, avalia o procurador da Fazenda Gabriel Augusto Teixeira Gonçalves, coordenador do Núcleo de Falências e Recuperações Judiciais em São Paulo.

Desde 2005, após a edição da Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2005), impasses em relação aos débitos tributários de empresas em recuperação judicial culminava, na maioria dos casos, no Judiciário.

A briga principal estava relacionada à necessidade ou não da apresentação da Certidão Negativa de Débitos (CND) para que o processo de recuperação judicial fosse aprovado pelos juízos especializados. De um lado, as varas empresariais costumavam entender que uma empresa com dificuldades financeiras não conseguiria ter uma CND e, portanto, poderia seguir com o pedido de recuperação. Já o fisco queria tentar reaver os débitos. No STJ, a questão foi pacificada em 2020, em vitória para os contribuintes.

Em paralelo a essa disputa, havia outro conflito em relação às garantias apresentadas no pedido de RJ e as penhoras nos processos de execução fiscal. Isso porque os juízos de causas tributárias davam andamento às execuções fiscais, mesmo se no processo de RJ houvesse algum acordo para evitar a perda do bem e auxiliar a empresa em sua recuperação.

Essa disputa criou um conflito de competências que foi levado para o STJ. Em 2019, o tribunal entendeu, no âmbito do tema repetitivo 987, que caberia ao juízo da recuperação decidir sobre penhora do patrimônio de empresa que também enfrenta execução fiscal. Em junho deste ano, com as mudanças na lei de recuperação e portarias da PGFN disciplinando a transação, o STJ decidiu pela desafetação do tema.

“Nos últimos 15 anos, mais ou menos, conviveu-se com esse cenário. O STJ dizia que não precisava de CND e também que a execução fiscal seria competência do juízo da recuperação judicial. E, nisso, o fisco ficava a ver navios, sem poder fazer nada”, explica Matheus Bueno, sócio do Bueno & Castro Tax Lawyers.

“Vimos por muito tempo as empresas acumulando mais dívidas com o fisco e isso não atrapalhava o processo de RJ. Então, a transação tributária veio realmente para mudar o paradigma, dando mais importância para o fisco. Uma grande desculpa para o STJ falar lá atrás que empresa não precisava de CND é porque não tinham instrumentos razoáveis de parcelamento”, diz Bueno.

Mudança de postura do Judiciário
Com a desafetação do tema 987 pelo STJ, somada às novas possibilidades de parcelamento via transação, a tendência é que a partir de agora os novos processos de RJ exijam pelo menos que seja demonstrado interesse em iniciar as tratativas com o fisco para resolução dos passivos tributários.

De acordo com o procurador Gabriel Gonçalves, essa postura já vem sendo observada no Judiciário de São Paulo. “Esse incentivo [de buscar resolução para os débitos tributários] é importante para que as empresas passem a querer sua regularização. E, em SP, posso afirmar que é um movimento que vai se consolidar mais ainda”, avalia, acrescentando que a partir da negociação de mais transações individuais com empresas em recuperação judicial o instrumento vai ficar ainda mais popular.

Gonçalves chama atenção, ainda, para o fato de que a partir do início das tratativas, as execuções fiscais do contribuinte são suspensas — salvo se ele optar por deixar os débitos de fora por entender que há chances de vitória no Judiciário. “O que a lei exige é só que haja uma garantia desse passivo, caso perca no Judiciário, o que eu entendo ser muito razoável”.

Pontos de atenção
Para os advogados ouvidos pelo JOTA, atualmente não há nenhum outro instrumento que poderia ser mais benéfico para empresas em recuperação judicial do que o da transação tributária. No entanto, ainda há pontos a serem institucionalmente melhorados.

A coordenação entre a PGFN e a Receita Federal é um ponto de alerta, segundo Daniel Zugman, sócio do escritório BVZ Advogados. “Até o momento, as modalidades de transação cobrem tão somente os débitos já inscritos em dívida ativa, de responsabilidade da PGFN. E, muitas vezes, a gente esbarra em empecilhos práticos. Como débitos que o contribuinte quer transacionar, mas ainda não estão inscritos em dívida. Então, é preciso entrar com pedido na Receita para que se acelere a inscrição. E isso pode demorar”, diz.

Zugman cita, ainda, as incertezas em relação à possibilidade de utilização dos créditos decorrentes da tese da exclusão do ICMS da base do PIS/Cofins para compensar os débitos na transação tributária. “Muitas empresas, em vez de optar pela expedição do precatório, preferem habilitar o crédito na Receita e utilizar sistema de compensação. Só que isso é um crédito administrado pela Receita e que ainda não há definições se poderá ser utilizado nas transações com a PGFN. Isso pode ser melhorado”.

Por fim, o tributarista chama atenção para a necessidade de que essa nova relação com o fisco federal também se estenda para estados e, eventualmente, municípios. “É um movimento ainda mais incipiente nos Estados. Tenho visto a PGFN mais consciente desse mecanismo, mas ainda é um movimento que precisa crescer no âmbito estadual”, explica. “Pelo menos em São Paulo, a legislação não é tão generosa quanto no âmbito federal. Os descontos são menores, os parcelamentos também têm prazos menores”, conclui.

Clara Cerioni – Repórter Freelancer.


Fonte: JOTA

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