Fachin vota contra marco temporal para demarcar terra indígena em julgamento no STF

Relator, ministro diz que direito dos povos originários precede o próprio Estado brasileiro

Marcelo Rocha

Brasília

O ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), refutou nesta quinta-feira (9) a tese do marco temporal na demarcação de terras indígenas.

Relator do processo em que a controvérsia é debatida, ele disse que uma interpretação restritiva sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas atenta contra a Constituição e contra o Estado democrático de Direito.

\”Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania\”, afirmou.

Nesta quinta-feira (9), o STF retomou o julgamento da matéria, com os votos dos ministros. As sessões anteriores foram reservadas às intervenções das partes interessadas, incluindo a União, o Ministério Público Federal e entidades que militam na defesa dos povos indígenas.

A análise deve ser retomada na próxima quarta-feira (15) com a continuação do voto do ministro Kassio Nunes Marques, o segundo a se manifestar —nesta quinta, ele abordou apenas questões preliminares.

Na avaliação de Fachin, em voto de 116 páginas, o direito indígena à terra é fundamental e originário, precedendo o próprio Estado brasileiro.

\”Em nome da posse tradicional indígena, compreende ser nulo e extinto título dominial ou possessório válido incidente nessas áreas afetadas à manutenção do modo de vida das comunidades indígenas, a consistir direito originário da etnia\”, disse.

O relator frisou ainda que, decorridos quase 33 anos desde a promulgação do texto constitucional, os indígenas no Brasil permanecem, embora cessada a tutela antes vigente, \”dependendo das providências administrativas para ver concretizado seu direito à terra\”.

E destacou a \”progressiva redução orçamentária e mitigação do vigor administrativo de gestão imposto à autarquia [Funai] destinada a efetivar as demarcações\”.

O debate chegou ao Supremo após o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), responsável pelos três estados da região Sul, usar a regra de ocupação ou não das terras indígenas em 1988 para impor uma derrota à comunidade xokleng.

À época, a Funai (Fundação Nacional do Índio) recorreu da decisão e foi neste recurso que o STF resolveu fixar a repercussão geral. Isso significa que a decisão a ser tomada pelo STF valerá para todo o país. Hoje, há 82 processos parados no Judiciário à espera de uma definição sobre a possibilidade de aplicação ou não da tese do marco temporal.

Na semana passada, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu que a fixação de um marco temporal para demarcação de terras indígenas deve ser aplicada caso a caso e que não pode haver uma regra linear para essas disputas sobre áreas reivindicadas por povos tradicionais.

Aras destacou a importância da preservação das regiões ocupadas historicamente por indígenas e sugeriu que o Supremo aprove uma tese a ser seguida pelas demais instâncias do Judiciário que preveja que a demarcação das terras “há de ser feita no caso concreto”.

Ao rejeitar a ideia de se afastar por completo o marco temporal dos processos judiciais que discutem a posse sobre terras em disputa, o chefe da PGR enviou um sinal à bancada ruralista no Congresso e ao presidente Jair Bolsonaro, que tem feito críticas à tese defendida por indígenas.

Em recente evento no Palácio do Planalto, Bolsonaro disse que eventual decisão do STF contrária ao marco temporal fará com que um território do tamanho da região Sul seja agregado às reservas indígenas. Segundo ele, o veredicto poderá afetar a produção de alimentos e a inflação.

\”Hoje, a cada cinco pessoas que se alimentam no mundo, um prato vem do Brasil. Se isso for aprovado, com toda certeza, a cada 15 pratos, um só vira do Brasil. Teremos aumento de inflação, escassez de alimentos, fazendas sendo simplesmente destruídas por reservas\”, disse.

As sustentações orais realizadas sobre a matéria deixaram claro que as divergências não giram em torno apenas do mérito da discussão, mas também sobre o histórico do STF em relação à constitucionalidade da existência de um marco temporal a ser observado para demarcação de terras.

De um lado, o advogado-geral da União, Bruno Bianco, afirmou que em 2009 o STF reconheceu o direito dos indígenas em relação à área conhecida como Raposa Serra do Sol, em Roraima, porque eles estavam no local desde antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Assim, segundo o representante do governo, o STF definiu as balizas para demarcações e decidiu que elas só podem ocorrer em situações em que as populações tradicionais já as ocupavam em 1988.

O advogado Rafael Modesto, da comunidade indígena xokleng, da terra Ibirama-La Klãnõ, por sua vez, afirmou que a interpretação de Bianco é uma tentativa de ressignificar aquela decisão favorável às populações tradicionais.

“As condicionantes serviram, e ficou claro, tão somente para dar operacionalidade àquele julgado. Destaque-se que o marco temporal parte do negacionismo, da negação à ciência antropológica, que conta com método próprio e é a única a dizer os limites das terras indígenas”, afirmou Modesto.

Luiz Henrique Eloy Amado, conhecido como Eloy Terena, por sua vez, usou a palavra em nome da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e afirmou que adotar o marco temporal é “ignorar todas as violações a que os indígenas foram e estão submetidos”.

“É preciso perguntar: se determinada comunidade não estava em sua terra na data de 5 de outubro, onde elas estavam? Quem as despejou dali? Basta lembrar que estávamos saindo do período da ditadura, onde muitas comunidades foram despejadas de suas terras”, disse.

A advogada indígena Samara Carvalho Santos, do Mupoiba (Movimento Unido dos Poivos e Organizações Indígenas da Bahia), também lembrou o histórico de expulsões de aldeias de suas regiões.

​\”Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar esse passado muito recente no qual sequer tínhamos o direito de escolher os nossos próprios destinos.\”​

CRONOLOGIA DO DEBATE
Raposa Serra do Sol
Em 2009, o STF dá decisão favorável aos indígenas na disputa com produtores de arroz em relação à terra Raposa Serra do Sol, em Roraima. A corte afirma que eles já estavam no local antes da Constituição de 1988 e têm direito à essa área

Santa Catarina
Em 2013, o TRF-4 usa a tese da ocupação da terra antes da promulgação da Constituição para dar decisão contrária aos indígenas Ibirama LaKlãnõ, de Santa Catarina

Parecer defende marco temporal
O governo Michel Temer (MDB) publica parecer para orientar a administração pública a reconhecer que indígenas têm direito apenas às terras que já estavam ocupadas por eles em 1988

Fachin suspende parecer
O ministro Edson Fachin, do STF, suspende a validade do parecer do governo federal que fixa a Constituição de 1988 como marco temporal para definir as terras que devem ser demarcadas

Julgamento do marco temporal
O STF inicia a análise de um recurso à decisão do TRF-4 de 2013. O Supremo aplicou repercussão geral ao caso, o que significa que a tese a ser fixada valerá para todos os processos do país que discutem o tema


Fonte: Folha de São Paulo

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