Entenda julgamento no Supremo sobre demarcação de terras indígenas e marco temporal
STF decide sobre tese não prevista na Constituição e que, na prática, trava demarcações
Renata Galf
São Paulo
Um julgamento de grande relevância para o futuro das demarcações de terras indígenas teve início no plenário no STF (Supremo Tribunal Federal) na última quinta-feira (26), após uma série de adiamentos.
Entre os pontos debatidos estão o conceito de terra tradicionalmente ocupada por indígenas e o marco temporal, uma tese que não está prevista na Constituição e que, na prática, trava demarcações. O julgamento será retomado na próxima quarta-feira (1º).
A tese do marco temporal cria um novo critério, de que os indígenas que não estivessem em suas terras na data da promulgação da Constituição não teriam direito de reivindicar a demarcação da área —o que ignoraria o histórico de expulsões e violência contra os diferentes povos.
Ruralistas defendem a tese sob o argumento de que a regra traria segurança jurídica, no sentido de que limitaria desapropriações.
Em meio à demora do STF para julgar o tema de modo definitivo, avançou na Câmara o projeto de lei 490 que busca, entre outras mudanças relativas à demarcação, instituir o marco temporal como parâmetro.
Cerca de 6.000 indígenas de diferentes povos estão acampados em Brasília para protestar contra a tese.
O que diz a Constituição? A Constituição Federal de 1988 diz que \”são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens\”.
Também estabelece que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Além disso, determina que tais terras são inalienáveis e indisponíveis, ou seja, não podem ser vendidas ou cedidas, e que os direitos sobre elas são imprescritíveis, ou seja, não caducam ou prescrevem.
Como funciona a demarcação? Em linhas gerais, um dos primeiros passos da demarcação de terras indígenas constitui a realização de um estudo técnico com produção de relatório antropológico, que identifica e delimita a área a ser demarcada. Essa etapa fica a cargo da Funai (Fundação Nacional do Índio).
A fase seguinte é feita pelo Ministério da Justiça, por meio da publicação de uma portaria declaratória. A demarcação é então homologada pela Presidência da República por decreto.
O que é a tese do marco temporal? Segundo tal tese jurídica, defendida por ruralistas, os indígenas que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988 —data da promulgação da Constituição— não teriam mais direito sobre elas, ainda que existam pareceres antropológicos demonstrando que elas pertenceram a seus antepassados.
A tese é criticada por advogados especializados em direitos dos povos indígenas, pois acabaria por validar e legalizar invasões e violências cometidas contra indígenas anteriormente à Constituição de 1988.
Parte desses ataques ocorreu no passado recente e foram cometidos pelo próprio Estado, tendo sido documentados pela Comissão Nacional da Verdade, que analisou violações cometidas no período de 1946 a 1988.
Os relatórios apontam que, além das invasões propriamente ditas, ocorriam também arrendamentos de terras que não obedeciam às condições acordadas, ocupando assim terras pertencentes a indígenas e que ainda assim eram posteriormente legalizados pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), órgão antecessor da Funai.
Também constam entre as violações sofridas no período trabalho forçado, cárcere privado, tortura, remoções forçadas e assassinatos de indígenas.
Haveria exceções ao marco temporal? Entre os que defendem a tese, exceções ao marco temporal seriam casos em que se ficasse comprovado que os indígenas não estavam no local em 1988 porque haviam sido expulsos.
Segundo a tese do “esbulho renitente”, por exemplo, seria preciso que os indígenas comprovassem que, na data da promulgação da Constituição, havia disputa física ou judicial pela posse da terra. No entanto, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pela Funai, ou seja, eles não poderiam entrar com uma ação na Justiça por iniciativa própria.
O conceito do marco temporal consta na Constituição? Não, a Constituição não traz o conceito de marco temporal. Em parecer, o constitucionalista e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP José Afonso da Silva sustentou que o marco temporal é inconstitucional.
“Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão”, escreve no documento.
O que defendem os povos indígenas? Eles defendem a tese do indigenato, sendo o direito dos povos indígenas a suas terras originário e, portanto, anterior ao próprio Estado brasileiro. Com isso, ele não é um direito concedido, mas sim reconhecido pela Constituição.
Outro aspecto apontado é que a Carta não inovou ao reconhecer o direito de posse da terra dos indígenas. Ele já constava na Constituição de 1934 e em legislações do período colonial, como em um alvará de 1680.
Fonte: Folha de São Paulo