Juristas e economistas apontam inconstitucionalidades na PEC dos precatórios

Base do argumento é que não cabe à União mais recurso contra decisão judicial ou negociação quando precatório é emitido

Thiago Resende Danielle Brant

Brasília

A proposta para que o governo pague precatórios —dívidas da União reconhecidas pela Justiça e sem possibilidade de recurso— de forma parcelada é vista por juristas e economistas como inconstitucional.

A Comissão de Precatórios da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) aponta uma possível violação de oito artigos da Constituição em caso de as dívidas não serem quitadas de uma só vez.

Na lista, o grupo cita, por exemplo, o direito de propriedade, o respeito ao direito adquirido e o respeito à segurança jurídica.

As outras cláusulas violadas são Estado democrático de Direito, princípio da separação dos Poderes, o princípio da isonomia, o direito à tutela jurisdicional efetiva e razoável duração do processo e o princípio da moralidade administrativa.

A base de argumentação é que não cabe à União mais recurso ou negociação quando um precatório é emitido. Portanto, deve-se quitar a dívida assim que reconhecida pela Justiça.

Procurado, o Ministério da Economia não respondeu aos questionamentos da reportagem.

O governo enviou uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para parcelar o pagamento de parte das despesas com precatórios. Mas o projeto ainda precisa ser votado por Câmara e Senado e promulgado para passar a vigorar.

A PEC é vista pelo Executivo como uma solução para abrir espaço no Orçamento sem estourar o teto de gastos —regra que limita o crescimento das despesas à inflação.

Caso o Congresso aprove e o STF (Supremo Tribunal Federal) não derrube a medida, o governo estará autorizado a parcelar em dez anos todos os precatórios com valor superior a R$ 66 milhões.

O projeto também cria uma regra temporária para parcelar débitos sempre que o valor desses passivos superar 2,6% da receita líquida. Para 2022, está previsto o parcelamento de todos os débitos judiciais com valor superior a R$ 455 mil.

A oposição ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem chamado a proposta de calote.

Para o presidente da Comissão de Precatórios da OAB, Eduardo Gouvêa, os pagamentos dos precatórios não deveriam ser contabilizados dentro da limitação de despesas.

\”Quando se coloca dentro do teto [de gastos] do Executivo a ordem que vem do Poder Judiciário, está havendo uma interferência clara de um Poder no outro, o que é uma cláusula pétrea da Constituição. Essa é uma das razões de que a PEC é inconstitucional e não vai resistir a uma análise do STF\”, disse Gouvêa.

Segundo ele, o aumento do número de precatórios se deve à melhora da eficiência do Judiciário e, por isso, a curva do valor devido tende a subir no curto prazo. Então Gouvêa propõe que esses gastos fiquem livres de limitação de desembolsos. O Ministério da Economia, porém, rejeita essa ideia.

Principal defensor da medida no Congresso, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), nega que o parcelamento de precatórios se trate de um calote. \”Quando nós demos o mínimo sinal de estabelecermos o rompimento da responsabilidade fiscal? Não houve e não haverá.\”

O professor Leonardo Costa, da FGV Direito Rio, lembrou que o STF já declarou duas vezes a inconstitucionalidade do parcelamento de dívidas de estados e municípios com outros credores (como empresas). No entanto, o caso atual é diferente.

\”Desta vez, trata-se de dívidas da União. Além disso, tem a questão da pandemia e do teto de gastos, que não existiam na época em que foi declarada a inconstitucionalidade\”, afirmou Costa.

Segundo o professor, o STF, que deve acabar decidindo sobre o tema, fará um julgamento também com aspectos políticos, dada a relevância das consequências no Orçamento e programas do governo. \”Não enxergo o Supremo como um órgão meramente técnico-jurídico\”, disse.

Ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (sem partido-RJ), nomeado secretário de Projetos e Ações Estratégicas do governo João Doria (PSDB-SP), chegou a articular uma emenda à proposta do governo para que, em vez de parcelar os precatórios, acione gatilhos do teto de gastos sempre que o valor de precatórios superar o valor pago em 2020 corrigido pela inflação.

Além disso, a minuta propõe eliminar a emenda de relator, reduzir emenda de bancada e individuais. Na avaliação de Maia, a PEC do governo busca \”dar um calote para manter o espaço fiscal e financiar o [novo] Bolsa Família\”.

\”A gente diz: o Bolsa Família tem que ser financiado, mas abrindo espaço com corte de despesa, não com esse calote que eles estão propondo\”, afirmou.

Para Maia, o assunto irá gerar bastante controvérsia, pois o STF já declarou a inconstitucionalidade do parcelamento de precatórios por entender que a \”ideia viola a coisa julgada e a separação de Poderes\”.

A equipe econômica disse que não esperava que os precatórios em 2022 subiriam para R$ 89,1 bilhões, o que representa uma forte alta em relação aos R$ 54 bilhões previstos no Orçamento de 2021.

Com a PEC, o governo espera abrir R$ 33,5 bilhões de espaço no Orçamento de 2022. A proposta viabiliza, por exemplo, que o Bolsa Família, que passa a se chamar Auxílio Brasil, seja turbinado.

\”Não tenho como pagar os R$ 90 bilhões sem afetar o funcionamento da máquina pública\”, afirmou o ministro Paulo Guedes (Economia), na quarta-feira (25).

Para o próximo ano, há mais cerca de R$ 15 bilhões em dívidas da União com os estados por causa do Fundef (fundo para o desenvolvimento do ensino fundamental e valorização do magistério).

Para Juliana Damasceno, economista e pesquisadora de finanças públicas do Ibre FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), uma lei sancionada no ano passado já permitiria o parcelamento das maiores dívidas, com os estados.

\”Se já existe uma lei, com respaldo de como parcelar, por que não adotá-la? E, no caso dos estados, faz todo o sentido que isso seja feito\”, disse Damasceno.

Desde que a PEC foi apresentada, o mercado financeiro reagiu negativamente, avaliando que a proposta poderia levar o governo a incorrer em irresponsabilidade fiscal.

O ex-secretário do Tesouro Carlos Kawall afirmou que a criação de um fundo com ativos da União que pudesse gerar despesas fora do teto de gastos preocupou o mercado \”porque se viu brecha para que na tramitação no Congresso fossem incluídas despesas que não apenas precatórios\”.

\”Não pagar precatório, parcelar é uma boa solução? Não, é uma dívida que você está deixando de pagar\”, disse. \”Do ponto de vista da credibilidade do devedor, é uma má decisão.\”

Para o advogado Pedro Teixeira de Siqueira, do escritório Bichara Advogados, a resposta ruim do mercado não foi surpresa.

\”Como a gente está em um ambiente conflagrado e cheio de incertezas em relação ao aumento de gastos e de despesas, qualquer movimento que pressuponha o não pagamento dentro do prazo estipulado gera uma tensão dentro do mercado que é muito prejudicial à economia\”, disse.

Diante de resistências parlamentares e críticas de especialistas, o governo passou a contar com uma via alternativa para amortecer o impacto dos precatórios sobre as contas públicas sem a necessidade de aprovação pelo Congresso.

A medida, elaborada sob o comando do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Luiz Fux, seria adotada por meio de uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

A ideia é que o próprio Judiciário module o volume de pagamentos por ano considerando a capacidade do cofre do governo. A questão, no entanto, ainda está em discussão.


Fonte: Folha de São Paulo

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