Imprecisos, PLs sobre imposto sobre grandes fortunas estão parados no Congresso
Especialistas avaliam que os PLs possuem falhas como a falta de previsão de arrecadação e o que é grande fortuna
O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou, pela primeira vez, a discussão de mérito sobre a omissão do Congresso Nacional ao não criar um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), conforme o previsto na Constituição Federal de 1988. E, embora o julgamento tenha sido interrompido pelo pedido de vista do ministro Gilmar Mendes no dia 25 de junho, o início da análise do tema pela Corte fez levou especialistas a olhar os projetos de lei disponíveis sobre o assunto no Congresso Nacional.
Apesar de o Legislativo brasileiro nunca tenha aprovado uma lei sobre o IGF, propostas do gênero são inúmeras nas duas casas. Segundo levantamento do Insper, de 1989 a 2020, 49 projetos de lei tramitam ou já tramitaram pelo Legislativo nacional. Desses, 25 surgiram em 2020, sendo 5 do Senado Federal e 20 da Câmara dos Deputados.
Boa parte dos novos projetos de lei criando o IGF ou propondo empréstimo compulsório sobre grandes fortunas foi impulsionado pela crise econômica, sanitária e social trazida pela Covid-19, conforme constam em suas justificativas. Porém, a movimentação na maioria dos projetos limitou-se ao apensamento em outros sobre a mesma matéria.
O recente debate sobre o tributo em países como o Reino Unido e a instituição do imposto em países latinoamericanos, como a Colômbia e, mais recentemente, Bolívia e Argentina, também contribuíram para que o assunto voltasse à pauta do Congresso. As discussões no Peru e no Chile também aquecem o interesse dos parlamentares para esse tipo de tributação. Na análise de especialistas consultados pelo JOTA, a discussão ter entrado em julgamento no STF também pode impulsionar o debate no Congresso.
No entanto, existe uma preocupação entre os especialistas sobre os projetos que tramitam na casa, pois os textos apresentam indefinições que, se não sanadas, podem deixar o tributo ineficaz e levar à judicialização do tema. Há indefinições sobre a arrecadação pretendida, as alíquotas, a base de cálculo e os contribuintes. Além disso, não ficam claros os parâmetros utilizados para a definição de grande fortuna.
Também há indefinição sobre a periodicidade da cobrança: apenas em uma vez ou anualmente. A situação ocorre tanto em projetos apresentados por parlamentares de direita quanto de esquerda.
“Não existe razoabilidade no que os projetos entendem por grande fortuna – pode ser de R$ 5 milhões a R$ 1 bilhão. As alíquotas variam muito, e ponto que me incomoda em todos os projetos é a indefinição de quem é o contribuinte das grandes fortunas”, analisa Alessandro Fonseca, advogado e sócio do escritório Mattos Filho.
“Os projetos de lei são bem incertos: não há consenso sobre qual a base de incidência do tributo, se é patrimônio líquido e o que compõe o patrimônio líquido. Não há consenso sobre quais são os contribuintes, se são só pessoas físicas ou entram pessoas jurídicas também. E tem muita divergência do que é considerado fortuna: tem projeto que fala que a fortuna começa com R$ 2 milhões e tem projeto a partir de R$ 10 bilhões”, analisa Larissa Luzia Longo, pesquisadora do núcleo de tributação do Insper, que fez um estudo sobre os PLs do IGF no Congresso.
“Tem projeto que institui imposto, como está previsto na Constituição, tem projeto que prevê empréstimo compulsório sobre grandes fortunas, tem projeto que propõe contribuição sobre fortuna”, complementa.
Por exemplo, o Projeto de Lei Complementar 50/2020, da senadora Eliziane Gama (Cidadania/MA), institui o IGF às alíquotas progressivas de 0,5% a 1%, aplicadas sobre o patrimônio líquido do contribuinte que exceder R$ 22.847.760,00. Já o PLP 59/2020, do deputado Marcon (PT/RS), institui o IGF à alíquota progressiva de 0,5% a 1% sobre as faixas de patrimônio líquido que ultrapassem 5.000 vezes o limite mensal da isenção de IRPF – cerca de R$ 9.519.900,00.
No PLP 190/2020 o deputado Enéias Reis (PSL-MG) propõe tanto o empréstimo compulsório quanto o IGF para financiar despesas relacionadas à pandemia da Covid-19. No IGF, as alíquotas seriam progressivas de 0,5% a 5,5% sobre faixas de patrimônio acima de R$ 50 milhões. Já o empréstimo compulsório seria restituível em 60 parcelas mensais ao longo de cinco anos contados a partir do ano-calendário de 2021, e a alíquota aplicada seria o dobro em relação à do IGF.
Já o PLP 193/2020, de autoria de deputados do PSOL, institui o IGF às alíquotas progressivas de 1% a 5% sobre as faixas de patrimônio a partir de R$ 5 milhões. Os contribuintes seriam pessoas físicas domiciliadas no país, o espólio e a pessoas física ou jurídica domiciliada no exterior em relação ao patrimônio que tenha no país.
Diversos PLPs foram apensados ao PLP 277/2008, da então deputada federal Luciana Genro, que dispõe que o imposto sobre grandes fortunas incidiorá sobre valores superiores a R$ 2 milhões e a fortuna seria todos os bens e direitos, situados no país ou no exterior, que integrem o patrimônio do contribuinte, com exclusão de instrumentos de trabalho, obras de arte e bens cuja posse ou utilização seja considerada pela lei de alta relevância social, econômica ou ecológica. Os contribuintes seriam pessoas físicas domiciliadas no país, o espólio e a pessoa física ou jurídica domiciliada no exterior em relação ao patrimônio que tenha no país.
“Quando olhamos para o Brasil, não tem nenhum estudo econômico que mostre o impacto da arrecadação e tente analisar o que seria uma grande fortuna e o impacto distributivo. O tributo, nos projetos de lei, acabam tendo uma finalidade justa, afinal, qualquer pessoa com bom senso quer tributar os mais ricos, mas fica mais no plano da ideologia do que no plano técnico”, explica Larissa Luzia Longo, pesquisadora do núcleo de tributação do Insper.
Na análise de Lorreine Silva Messias, economista e pesquisadora do Insper, que participa dos estudos sobre o IGF, a pandemia acentuou os níveis de desigualdade, não só no Brasil como em outras economias mais maduras, o que fez crescer o movimento a favor da tributação das grandes fortunas na tentativa de tentar corrigir possíveis distorções sociais. No Brasil, o assunto tomou um fôlego maior, até pela desigualdade já existente e, prova disso, está no salto no número de proposições no Congresso brasileiro.
Porém, ela ressalta que é preciso cautela na tomada de decisão de criar o tributo por lei complementar. Por isso, é preciso analisar os projetos em jogo no Congresso, os estudos sobre o assunto, observar as experiências internacionais e as consequências para o Brasil.
“Me parece mais interessante tentarmos aumentar a progressividade no sistema tributário brasileiro via Imposto de Renda do que com a criação de um novo tributo. No Imposto de Renda basicamente adotamos práticas que destoam de práticas internacionais. A minha sugestão é que o Brasil adote uma postura mais convergente que traga mais progressividade e, dessa forma, cuide melhor das questões de desigualdade”.
Para Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), os projetos no Congresso precisam andar. Ele afirma que a entidade está contribuindo para um aprimoramento dos textos, tanto que elaborou proposta de lei complementar de contribuição única para fortunas acima de US$ 1 milhão.
Dúvidas sobre o tributo
Há dúvidas sobre a própria implementação do imposto. De um lado, grupos defendem que o tributo pode ampliar a arrecadação e corrigir as distorções sociais, ainda mais em países em desenvolvimento com forte desigualdade social, como o Brasil. Notas técnicas defendem que o IGF pode ajudar a diminuir a desigualdade agravada pela Covid-19.
Por outro lado, há quem defenda que o tributo trará fuga de capitais e redução dos investimentos. Alguns estudos questionam a efetividade do tributo: se, de fato, ele é eficiente em termos de geração de receitas e se consegue trazer maior bem-estar à população.
A Receita Federal, em uma nota enviada ao deputado Léo Moraes (Pode-RO), informou que é preciso analisar com prudência os aspectos positivos e os negativos de um tributo sobre grandes fortunas. O órgão afirma que o tributo pode ser uma possível solução para diminuir a desigualdade e pondera a dificuldade de mensurar fortunas e a possibilidade de transferência de patrimônio para outros países e/ou outras pessoas.
A Receita pondera o difícil controle, por isso, será necessária a “criação de bancos de dados consistentes destinados à apuração do imposto já que as grandes fortunas de contribuintes pessoas físicas acabam se confundindo com o patrimônio das pessoas jurídicas”.
Estudo do Insper sobre o assunto mostra que dos 12 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que instituíram o IGF de pessoas físicas, apenas três continuam com a prática: Espanha, Noruega e Suíça. Nesses países, o imposto possui alíquotas nominais progressivas.
De acordo com relatório da OCDE citado pelo Insper, nos países em que foi instituído, o IGF representa uma pequena parcela do total de receitas tributárias e, em longos períodos, os países constataram manutenção ou queda na arrecadação. O documento pondera ainda que o tributo não alcança devidamente o seu objetivo na redistribuição das riquezas e os custos administrativos para a fiscalização e arrecadação do tributo são altos comparada a seu efeito arrecadatório.
Na Espanha, o tributo representa 0,5% da arrecadação e é cobrado em fortunas acima de € 700 mil; Na Noruega, ele representa 1,1% da arrecadação e é cobrado a partir de € 135 mil. Na Suíça, em Zurique, o valor é cobrado a partir de € 73.141 e representa 3,9% da arrecadação.
“Por que eu termino o trabalho sugerindo que o Brasil não vá nessa direção? Porque é um tributo pouco eficiente em termos arrecadatórios; ele é um tributo que não tem evidência robusta – exceto o caso da Suíça, mas é o único país que traz melhorias em termos de desigualdade e bem-estar social. É um tributo que estimula práticas elisivas e é muito custoso para o fisco, em termos de monitoramento da base”, defende Lorreine Messias, pesquisadora do Insper.
“Sem contar que o Brasil já convive com uma competitividade muito mais baixa do que as economias maduras. A criação desse novo tributo poderia ser recebida pelo investidor como mais um elemento adicional desfavorável ao investimento no Brasil. A gente já dispõe de muitos [tributos] e já sinalizamos com frequência para o investidor que o Brasil não tem um bom ambiente institucional, econômico e político”, complementa.
Já a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) defende que não há dificuldades na implementação do tributo no Brasil. A associação redigiu um projeto de lei complementar sobre o tributo e encampa vários argumentos do relatório produzido pelo Reino Unido, que criou uma comissão composta por acadêmicos e consultores voltada a estudar a adequação e viabilidade do país para implementar um tributo sobre o patrimônio. Em dezembro de 2020, a comissão publicou um relatório expondo os prós e os contras da adoção de um tributo sobre o patrimônio com o intuito de arcar com os danos econômicos deixados pela pandemia.
Ao final, a comissão posicionou-se a favor da adoção de um tributo sobre o patrimônio líquido do tipo one-off, incidindo em um único momento do tempo, ainda que seu pagamento possa ser realizado em parcelas distribuídas ao longo de cinco anos. Pelo projeto escrito pela Unafisco, no Brasil, o tributo também seria aplicado em uma única vez, tendo como objetivo arrecadar recursos para a saúde, perante os efeitos causados pela pandemia da Covid-19.
“A opção pela instituição de uma contribuição e não de um imposto se dá em razão do princípio da anterioridade, uma vez que o imposto somente poderia ser cobrado no exercício seguinte à publicação da lei. A contribuição, por sua vez, poderá ser exigida 90 dias após a publicação do ato normativo”, diz a nota técnica da Unafisco.
O tributo alcançaria aproximadamente 200.000 contribuintes pessoas físicas, com renda mensal total a partir de 80 salários mínimos e que detêm 30% dos bens e direitos declarados no Imposto sobre a Renda, o que representa 1% da população brasileira. “As alíquotas progressivas e o limite de isenção de R$ 4,67 milhões são propostos com fundamento em extenso estudo publicado pela Unafisco Nacional. Com base neste estudo, projeta-se uma arrecadação da contribuição ora proposta de R$ 53,4 bilhões; se considerarmos a sonegação fiscal, na ordem 27%14, este valor ficaria em torno de R$ 38,9 bilhões”, traz a nota técnica.
Na análise de Mauro Silva, presidente da Unafisco, os argumentos contrários ao tributo sobre grandes fortunas não se sustentam, ainda mais com a proposta de uma contribuição única. Em sua análise é possível fixar parâmetros do que são grandes fortunas e identificar os contribuintes pelo Imposto de Renda. Ele também não acredita em fuga de investimentos dada a grandeza do mercado econômico brasileiro, e defende que a sonegação fiscal no Brasil já é alta e não mudaria com a instituição da contribuição sobre grandes fortunas.
“A gente tem uma nota técnica para definir o que é grande fortuna, fomos buscar parâmetros internacionais e chegamos a 1 milhão de dólares. O potencial arrecadatório é de mais de R$ 50 bi. É uma arrecadação significativa, quase dá para pagar todo o Bolsa Família”, defende.
Omissão
No STF a discussão na ADO 55 gira em torno do artigo 153, inciso VII, da Constituição, que define que compete à União instituir um Impostos sobre Grandes Fortunas, nos termos de lei complementar. No caso de reconhecimento de omissão pelo Supremo caberá ao Congresso editar norma sobre o tema, porém os ministros poderão fixar um prazo para que o assunto seja resolvido.
O julgamento começou no dia 25 de junho e foi interrompido pelo pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes, com isso, a análise deverá ser feita em plenário físico. Em seu voto, o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu pela omissão, mas não fixou um prazo para o Congresso suprir a omissão. No entanto, com a aposentadoria do magistrado, outro relator será designado e o julgamento começará do zero, caso o ministro-presidente, Luiz Fux, não acate o pedido de Marco Aurélio para que os seus votos sejam mantidos.
Na visão do sócio do escritório Souto Correa Advogado, Frederico Hilzendeger, o dispositivo constitucional trata de uma regra de competência, e não de um dever de instituição. Isso porque, a Constituição não diz que a União “deve” instituir tal imposto, mas sim que a ela “compete” instituir, de modo que cabe ao Congresso Nacional, composto por representantes eleitos, deliberar e decidir pela criação, ou não, do Imposto sobre Grandes Fortunas. “Nada impede que o Congresso deixe de exercer sua competência se assim entender, pois não se trata de um dever de instituir o imposto”, defende o advogado.
Hilzendeger destaca, ainda, que mesmo não tendo sido editada lei complementar nesse sentido, os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional “demonstram inexistir omissão por parte do ente político. Pelo contrário, tal fato demonstra que o assunto já é debatido e que, por diferentes fatores, o legislador decidiu por não editar lei nesse sentido”, explica Hilzendeger. Para ele, uma ordem judicial determinando o debate e a edição da lei poderia, inclusive, prejudicar a independência dos poderes.
O STF negou, em 2018, um pedido similar sobre taxação de grandes fortunas, mas a Corte não chegou a adentrar o mérito. Por unanimidade de votos, os ministros acompanharam o relator, ministro Alexandre de Moraes, pela improcedência da ADO 31. Na ocasião, os magistrados entenderam que o governador do Maranhão, Flávio Dino, não tinha legitimidade para propor esse tipo de ação.
Fonte: JOTA