Recados e alfinetadas marcam abertura dos trabalhos do Congresso e do Judiciário, em clima de tensão

Alcolumbre cita impasse com emendas parlamentares e diz que cada Poder deve respeitar suas ‘funções e limites’; Barroso afirma que as democracias também reservam parcela de poder para agentes públicos que não são eleitos pelo voto popular

BRASÍLIA – A reabertura dos trabalhos do Legislativoe do Judiciário, nesta segunda-feira, 3, foi marcada por troca de farpas e recados entre os Poderes. Em um momento de embate entre o Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF) por causa de temas que vão do bloqueio das emendas parlamentares às investigações dos atos golpistas, ficou evidente que a tentativa de desanuviar as relações não passou até agora de retórica.

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Tanto no STF como na Câmara dos Deputados todos os discursos iam na linha da harmonia, com uma ou outra alfinetada, até que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), citou explicitamente o imbróglio sobre o bloqueio das emendas. Sem rodeios nem rapapés, foi direto ao ponto: disse que, para o bem-estar de todos, era essencial que cada Poder respeitasse suas funções e limites.

“A recente controvérsia sobre emendas parlamentares ao Orçamento ilustra a necessidade de respeito mútuo e diálogo contínuo”, afirmou Alcolumbre na retomada das sessões do Legislativo. Sentado ao lado do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, ele mostrou que o Congresso não vai ceder.

“As decisões do Supremo Tribunal Federal devem ser respeitadas, mas é igualmente indispensável garantir que este Parlamento não seja cerceado em sua função primordial de legislar e representar os interesses do povo brasileiro, inclusive levando recursos e investimentos à sua região”, insistiu.

No fim do ano passado, o ministro do STF Flávio Dino bloqueou parte das emendas parlamentares, sob o argumento de que não havia transparência nos repasses de verbas. Agora, deputados e senadores ameaçam barrar votações, como a do Orçamento de 2025, enquanto o imbróglio não for resolvido.

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O dia começou com a fotografia da unidade entre os Poderes, mas terminou nebuloso. Antes das sessões no Congresso e no Judiciário, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com Alcolumbre e com o novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), no Palácio do Planalto. Lula disse que sempre ouviria os parlamentares antes de enviar os projetos do governo e previu dias melhores na relação entre os Poderes.

Até agora, porém, não é o que parece. Além de não haver perspectiva de acordo à vista, a polarização promete atrapalhar bastante os trabalhos do Congresso. Nesta segunda-feira, 3, por exemplo, seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro, munidos de bonés verde-amarelo com a inscrição “Comida barata novamente – Bolsonaro 2026?, protestaram no plenário da Câmara quando foi anunciada a mensagem de Lula ao Congresso. O texto de 662 páginas, com as prioridades do governo para 2025 – como equilíbrio fiscal e reforço de políticas sociais em saúde e educação –, foi entregue pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Como é de praxe, a leitura foi feita pelo primeiro-secretário da Câmara, que hoje é Carlos Veras (PT-PE). Os bolsonaristas, aos berros, xingavam o presidente. “Fora, Lula!”, gritavam. Do outro lado, aliados do governo, com bonés azuis decorados pela frase “O Brasil é dos brasileiros”, reagiam com o coro “Sem anistia! Sem anistia!”.

Alcolumbre teve de intervir e pedir “cordialidade”. Em seu discurso, Hugo Motta afirmou que o desafio do Executivo, Legislativo e Judiciário, neste ano, é estabelecer convergências sobre as pautas mais relevantes. “O trabalho conjunto dos três Poderes está no cerne do regime político do País e da democracia, que devemos todos venerar e defender”, destacou, cobrando “temperança, equilíbrio, sobriedade e diálogo”.

O presidente do STF chegou a ser questionado por repórteres sobre os recados indiretos e a troca de farpas entre a Corte e a nova cúpula do Congresso, representada pelo Centrão. “Entre nós não há necessidade de recado”, despistou ele. “Temos conversa aberta e franca de pessoas que se querem bem. Quando, eventualmente, divergirmos, teremos de sentar à mesa em busca de acordo.”

Barroso entregou ao Congresso a mensagem do Judiciário e fez ali um discurso de pacificação. Horas antes, ao abrir a primeira sessão de 2025, no entanto, o magistrado também mandou alguns recados para o outro lado da Praça dos Três Poderes.

“Lembro que todas as democracias reservam uma parcela de poder para ser exercida por agentes públicos que não são eleitos pelo voto popular, para que permaneçam imunes às paixões políticas de cada momento. Esses somos nós”, disse o presidente do STF, rebatendo acusações de ativismo judicial. “O título de legitimidade desses agentes é a formação técnica e a imparcialidade na interpretação da Constituição e das leis.”

Disposto a jogar água na fervura das críticas entoadas pelo Centrão e por aliados de Bolsonaro, Barroso afirmou que cabe ao Judiciário decidir as “questões mais complexas e divisivas” da sociedade brasileira. “E, naturalmente, convivemos com a insatisfação de quem tem interesses contrariados”, observou.

Nos próximos dias, a Procuradoria-Geral da República enviará ao STF denúncia contra Bolsonaro e outros investigados no inquérito da Polícia Federal por tentativa de golpe.

No plenário do Supremo, ao lado de Lula, Motta, Alcolumbre e do procurador-geral da República, Paulo Gonet, Barroso lembrou que aquele prédio havia sido “invadido, queimado, inundado e depredado com imensa fúria antidemocrática”, em 8 de janeiro de 2023. E disse que todos estavam ali para celebrar a vitórias das instituições.

“Não há pensamento único no País, porque isso é coisa de ditaduras, mas as diferentes visões de mundo são tratadas com respeito e consideração”, afirmou o magistrado. Em seguida, incluiu no discurso um trecho de improviso: “A democracia tem lugar para todos: liberais, progressistas, conservadores. Só não tem lugar para quem não aceita jogar o jogo pelas regras da democracia”.

Barroso também apresentou uma prestação de contas não apenas das atividades, mas também dos gastos do Judiciário. Não foi à toa: no sábado, 1.º, após ser eleito presidente da Câmara, Motta havia dito que todos os Poderes precisavam divulgar seus gastos porque não era possível haver “transparências relativas”.

A estocada foi dada pelo deputado no rastro de decisões de Flávio Dino que, ao bloquear uma fatia das emendas, disse não haver transparência nos repasses de verbas e determinou a identificação dos autores das transferências de dinheiro. Há no Supremo 15 investigações concluídas pela Polícia Federal sobre desvio de recursos das emendas destinadas a abastecer redutos eleitorais dos parlamentares.

“Desde 2017, o Judiciário federal vive com o mesmo orçamento, acrescido apenas do percentual de inflação e, em 2024, com pequeno aumento decorrente da lei complementar 200/2023 (arcabouço fiscal)”, afirmou Barroso, ao prestar contas. “A propósito, em 2024, devolvemos ao Tesouro R$ 406 milhões não gastos”, completou. O custo do Judiciário brasileiro, atualmente, é de R$ 132 bilhões por ano, o que representa 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB). As emendas previstas no Orçamento de 2025 somam R$ 50,5 bilhões para deputados e senadores. Mas o governo ainda não conseguiu aprovar a peça orçamentária. Ao que tudo indica, só conseguirá depois do carnaval, se houver acordo sobre o desbloqueio das emendas.


Fonte: Estadão

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